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Coluna
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Resolução de ano novo: vamos ser imortais

Já que certas mortes são inevitáveis, declaro que gostaria de ver menos gente chorando perdas gastronômicas no fim de 2017

Duas meninas cozinhando.
Duas meninas cozinhando.Getty
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Escrevo esta coluna antes do dia 31 de dezembro. Portanto, não sei se teremos mais perdas de pessoas talentosas, estimadas, ídolos, ainda em 2016. Espero que não. O que vimos ao longo dos últimos doze meses não foi moleza. Um ano que começou com a morte de alguém como David Bowie, convenhamos, já mostrou que não estava para brincadeiras. A lista é enorme e, claro, as ausências doem em intensidades diferentes: Umberto Eco, Muhammad Ali, Prince, Leonard Cohen, George Michael e outros tantos mais, no Brasil e no exterior.

Contudo, tenho pensando cada vez mais em quanto o sentido da morte “pública” se alterou nos últimos anos – isso, tendo em mente artistas, gente com produção consolidada, com legado, que vá além da mera celebridade. De certa forma, depois do advento da internet e das redes sociais, com a diversidade de meios e plataformas, não é mais absurdo falar em imortalidade. Vou explicar melhor.

Nunca encontrei David Bowie, não tínhamos nenhuma proximidade. Minha tristeza é a do fã, do admirador de seu trabalho. Seus parentes e amigos, por outro lado, ainda devem estar sofrendo uma perda que é real, visceral. Entretanto, tirante o fato de que, convictamente, o cantor não fará novos discos, quase nada mudou para mim e para outros tantos aficionados. Pelo contrário. Os álbuns de Bowie continuam disponíveis, assim como seus filmes. Em 2016, descobri vídeos inéditos, gravações exclusivas e outros registros numa tal quantidade que ainda nem pude processar. Isso é ou não é uma forma vida quase eterna?

Morrer, no sentido contemporâneo/digital, portanto, é um tanto diferente do que morrer analogicamente. As memórias, as imagens, as histórias, tudo isso nos protege um pouco mais da dor. Será que um dia, para além dos recursos do mundo virtual, poderemos controlar inclusive a finitude física, a extinção em carne e osso? Eu espero que não: seria antinatural. Mas acho que podemos dar nossa contribuição para que a vida seja ao menos mais longa, em muitos aspectos de nossa existência. Por exemplo: você é do tipo que reclama que nunca mais comeu um certo prato de sua infância? Que determinada receita familiar foi perdida, esquecida por seus parentes? Ou que aquele antigo restaurante, onde a família almoçava aos domingos, encerrou as atividades? Se for, eu pergunto: será que você poderia ter feito algo a respeito?

Reconheçamos: a todo fim/começo de ano nos pegamos conversando sobre lugares tradicionais que fecharam as portas. Lamentamos, lembramos de cardápios e fatos, maldizemos diretamente a crise, que é cruel com os negócios, e criticamos genericamente a sociedade, que não cuida de seu patrimônio. Só esquecemos de mencionar que um restaurante precisa de clientes pagantes. Reminiscências e causos não acertam as contas. Homenagens e menções afetivas não sustentam folhas de pagamento.

De modo análogo, fico ressabiado com leis que propõem o tombamento de certas especialidades. O virado à paulista, por exemplo, é sempre objeto de pleitos do tipo, realizados junto a órgãos públicos. Mas o que seria mais eficaz na missão de levar a receita às futuras gerações: sua presença nos arquivos históricos, ou seu consumo cotidiano, frequente, cheio de apetite e, portanto, vivo? Comer um prato é, acima de qualquer coisa, garantir a sua sobrevivência.

Por fim, vou propor um exercício para 2017 – caso você aprecie receitas de família e, perigosamente, constate que alguns dos seus pratos favoritos estão na bica de desaparecer. Retome os cadernos das avós, das mães. Investigue se as receitas estão completas, atualizadas. Tente executá-las, compare se o sabor e a aparência são os mesmos (e, se não forem, faça os ajustes necessários, de preferência com a anuência da própria cozinheira). Lembre-se que a receita, por si só, é um plano de trabalho. Já o prato, o produto final, é a soma da receita, da mão que a executa e do contexto em que ela nasce.

Então, já que certas mortes são inevitáveis, declaro que gostaria de ver menos gente chorando perdas gastronômicas no fim de 2017. E, entre as resoluções de ano novo, combinemos que você vai: 1) visitar aquele velho restaurante do coração, antes que ele acabe; se não estiver bom, faça críticas construtivas, isso ajuda a melhorar; 2) Comer aquele prato do qual você gosta, antes que ele vire meramente “patrimônio imaterial” da cidade; 3) registrar e aprender quitutes de família, antes de se lamentar que ninguém – inclusive você – guardou a receita (abaixo, eu sugiro como fazer).

Registrando uma receita de família

1) As receitas estão em cadernos manuscritos? Então, escaneie ou fotografe as páginas. E cuide bem do caderno, inclusive evitando que as páginas se desprendam.

2) Tire todas as dúvidas com a autora das receitas. Grafia, quantidades. Veja se estão atualizadas (você conhece a sua a mãe: é provável que, de cabeça, ela tenha feito alterações, que jamais foram colocadas no papel).

3) Pese e meça os ingredientes, para que a receita possa ser executada por todos, sem truques. Verifique o que significa aquela colher “meio-rasa” de açúcar; cheque, afinal, quanto comporta de fato aquele “copo de requeijão” cheio de farinha. Bote tudo numa balança, ou use xícaras e colheres dosadoras-padrão.

4) Talvez alguns produtos já não estejam mais disponíveis. Procure a equivalência, até ficar do mesmo jeito.

5) Esmiuce as instruções. Entenda o que é sal a gosto, o que é bater bem, o que é açúcar o quanto baste, esclareça o que é dar o ponto. Pergunte.

6) Execute as receitas, prove; faça-as passar pelo crivo da dona do caderno; confira, pois sempre pode haver um pulo do gato, um truque (uma panela de ferro, um jeito de mexer...) que contribui para dar o sabor característico do prato.

7) Por outro lado, se as receitas não estão escritas, não perca tempo, grave-as. Faça vídeos, convide a cozinheira a explicar etapa por etapa, com seus macetes, com seu detalhamento. Mas aja com naturalidade. Não é nem para produzir um vídeo de festa, nem um registro do departamento de museologia da universidade. Publique no seu perfil no Facebook, crie um canal no Youtube...

8) Sistematize o material, organize-o. E compartilhe: não concentre as informações com uma pessoa só. Afinal, queremos a sua receita de família cruze fronteiras e atravesse gerações.

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