O pai que arrecadou 150.000 euros ao mentir sobre a doença da filha
O pai da menina doente arrecadou e quantia em quatro dias com um relato fictício
A história da menina Nadia Nerea, de 11 anos, vítima de uma rara doença genética que segundo seus pais a ameaça de morte iminente, tornou-se um fenômeno midiático no sábado passado após a publicação de um artigo na imprensa e sua posterior repercussão nas mídias sociais, televisão, rádio e outros jornais.
A chamada à solidariedade deu resultado: 153.000 euros em apenas quatro dias. É o pai da menina, Fernando Blanco, quem fornece o número. Ele está contentíssimo, diz por telefone a este jornal, porque já tem o dinheiro para uma suposta operação em Houston (EUA), que salvará sua vida. De acordo com seu relato, ele viajou com Nadia a países como Guatemala, Índia, Panamá, Rússia, Brasil, Argentina, Finlândia, Cuba e Chile para contratar os “melhores especialistas” na doença, a tricotiodistrofia. Ele diz ainda que ele e a menina passaram um mês no Afeganistão, “sob as bombas”, para localizar a suposta caverna onde estava escondido um dos maiores especialistas do planeta.
A operação de Nadia, uma “manipulação genética proibida na Espanha” por meio de “três buracos na nuca”, seria a quinta, afirma o pai. Cada uma dessas supostas intervenções foi acompanhada por campanhas de captação de recursos cheias de emotividade. “Há muitas crianças doentes. Esse é o problema. Eu tenho a sorte de ter uma menina que todo mundo se apaixona por ela”, diz White.
A família de Nadia vem alertando sobre seu estado terminal desde 2008
O pai, que às vezes se apresenta como Fernando Drake Blanco, se chama, de acordo com seu documento de identidade, Fernando Blanco Botana. É de Valladolid, viveu em Ibiza e Maiorca e agora reside em uma pequena cidade de pouco mais de 200 habitantes, na comarca de Alt Urgell (Lérida), Fígols i Alinyà, com a filha e a esposa, Margarita Garau.
A história do pai sobre a suposta cura de Nadia é falsa, como demonstrou uma pesquisa realizada pelo EL PAÍS. Blanco diz que recrutou um “grupo secreto” de cientistas de elite, incluindo pesquisadores “militares”, cujos nomes se recusa a fornecer. Ele os perseguiu por todo o mundo, segundo diz, e se encontram periodicamente em Houston para discutir o caso de Nadia.
O pai diz ter câncer no pâncreas e no fígado, diagnosticado há quase três anos na clínica Teknon, em Barcelona, mas lá não existe nenhum registro dele como paciente
A família começou a contar essa história na televisão em 2009, em programas de grande audiência. A última campanha começou com a publicação de um artigo no jornal El Mundo no sábado passado e continuou nos programas de televisão (El programa de Ana Rosa, na Telecinco, e Más vale tarde, na La Sexta).
Este jornal não encontrou nenhuma foto ou vídeo da menina no exterior. Ao pedir a Blanco alguma imagem de sua suposta viagem ao Afeganistão, ele responde que tem apenas duas fotos, feitas com um celular Nokia, e que só aparecem ele e a filha. “Não se vê nada mais”, diz. Ele não dá nenhum detalhe daquela suposta aventura porque, segundo afirma, quer escrever um livro “quando houver um final feliz para Nadia”.
“Pertenço ao Grupo Europeu de Tricologia e conheço todos os cientistas de referência. A história do especialista numa caverna no Afeganistão é uma mentira”, diz o dermatologista Juan Ferrando, do Hospital Clinic de Barcelona. Ferrando foi um dos médicos envolvidos no diagnóstico da menina, em 2006.
O especialista explicou que a doença é rara, mas não é “a segunda doença mais rara do mundo, com apenas 36 casos conhecidos”, como afirma o pai nos estúdios de televisão. O próprio Ferrando publicou 20 casos na revista International Journal of Trichology. “Certamente há pelo menos 200 casos notificados. E a grande maioria não é grave”, aponta. A família saiu na mídia periodicamente desde 2008 alertando que, sem dinheiro para operações caras, sua filha poderia morrer.
A tricotiodistrofia é um grupo heterogêneo de doenças de origem genética. Os sintomas são muito variados, mas entre eles, geralmente, costumam estar o baixo peso ao nascer, atraso no desenvolvimento intelectual, baixa estatura, pele escamosa e problemas oculares. Uma de suas características principais é a alteração do cabelo, que se torna quebradiço. Num estudo internacional de 110 casos, 17 crianças morreram antes de completar quatro anos e duas morreram entre cinco e nove anos. A partir dos 10 anos, a mortalidade não existe nessa revisão, exceto uma pessoa que morreu com 47 anos e também tinha outra patologia, uma síndrome hipereosinofílica. Não há cura para a tricotiodistrofia, mas os sintomas podem ser tratados.
Fernando Blanco afirma que as centenas de milhares de euros arrecadados nas diferentes campanhas serviram para financiar as quatro operações nos EUA, realizadas por “um neurocirurgião mexicano” cujo nome não diz. Ele afirma que um homem chamado Ed Brown, ligado à NASA e aos vencedores do Prêmio Nobel de Medicina de 2013, seria o pai intelectual dessas operações milagrosas.
“O doutor Ed Brown proibiu-me de dar os nomes dos pesquisadores”, diz. Perguntado sobre quem é Brown e por que o nome dele não aparece em nenhuma revista científica, o pai da menina se defende. “Você vai na Internet e não vê, porque é um cara que trabalha para o Governo. Estive com ele, viu minha filha quatro vezes. A melhor prova é que minha filha está aqui. Mas Brown morreu há dois anos. Ele tinha 80 anos”, declara.
O pai argumenta que as supostas operações que salvaram a vida de Nadia foram concebidas por um homem chamado Ed Brown, que não aparece em lugar nenhum "porque é um cara que trabalha para o Governo", de acordo com a família
A narrativa de Blanco sobre a situação desesperada da família incorpora nos últimos tempos sua própria doença: um câncer de pâncreas com metástases no fígado que, segundo diz, renunciou a tratar para dedicar todas as suas energias à filha. Seu diagnóstico foi feito “há quase três anos”. “Em abril de dois anos atrás me disseram que eu não passaria do Natal. Estou cheio de tumores. Não vou a nenhuma porcaria de médico até que minha filha esteja encaminhada”, diz.
A história do câncer terminal de Blanco criou uma onda de solidariedade no fim de semana. “Nadia, de 11 anos, mas com um corpo de 80. Seu pai, com câncer terminal, não se trata para continuar a levantar dinheiro”, tuitou no sábado o jornalista Jordi Évole aos seus quase três milhões de seguidores. “Número da conta do Banco Sabadell para ajudar Nadia”, indicou a colaboradora da televisão Belén Esteban. “Até onde você iria se fosse sua filha?”, perguntou a apresentadora Ana Pastor. “Peço-lhes que divulguem isto com a hashstag #unagranhistoriadeamor”, pediu o cantor Alejandro Sanz.
Blanco, numa conversa por telefone com este jornal na última quarta-feira, se mostrou inicialmente relutante a dizer em qual hospital seu câncer foi diagnosticado e começou o tratamento. Finalmente, ele diz que foi na clínica Teknon, em Barcelona. Uma porta-voz diz da clínica afirma que Blanco não consta em registro algum. Outras fontes de saúde apontam também que nenhum médico faz acompanhamento da menina no lugar onde vive há três anos, nem no Centro de Atención Primaria de Organyà e nem na Fundació Sant Hospital de La Seu d’Urgell, os dois centros de saúde públicos que poderiam atender a menina tendo em vista seu local de residência.
As operações em Houston descritas pelo pai como "manipulações genéticas através de três buracos na nuca" não existem
As operações em Houston descritas pelo pai como “manipulações genéticas por meio de três buracos na nuca” não existem
O pai diz que agora, depois da morte do doutor Brown, seu “empenho” é tentar convencer o pesquisador Juan Carlos Izpisúa a assumir o comando das operações. Izpisúa, do Instituto Salk, na Califórnia, conseguiu há duas semanas devolver parcialmente a visão a ratos cegos mediante uma nova ferramenta de edição genômica CRISPR. A técnica permite corrigir erros genéticos num adulto, mas, por enquanto, apenas em animais e experimentalmente. “Sei que custa muita grana, por isso preciso de dinheiro, para fazer essa operação, porque do contrário a menina se vai”, diz o pai de Nadia.
Blanco tampouco mostra imagens do hospital de Houston onde a menina teria sido operada em 2012. Na ausência do nome do médico que realizou o procedimento experimental, Blanco só concorda em dar o nome do hospital: Houston Children’s Hospital. Nenhum centro hospitalar da cidade texana tem esse nome, mas há um muito semelhante: o Children’s Memorial Hermann Hospital. Uma porta-voz diz não ter qualquer registro da paciente ou sabe alguma coisa sobre esse suposto tratamento, que, de acordo com Blanco, implica “resetar o cérebro”, algo sem sentido do ponto de vista científico. Outro centro, o Texas Children’s Hospital, informa que a menina não aparece em nenhum dos seus registros.
A geneticista Ana Patiño, da Clínica Universidade de Navarra, confirmou com uma análise genética a tricotiodistrofia da menina em 2006 e aí terminou sua relação com o caso até à data. Em relação ao que foi publicado na imprensa, Patiño diz ser algo “alucinante”. Essa médica dirige a Unidade de Genética Clínica do centro e não entende o suposto tratamento experimental que a criança estaria recebendo em Houston, de acordo com o pai. “Estou muito envolvida no grupo de terapia genética do meu centro, para doenças raras e, é claro, não tem nada a ver com isso. Nem a metodologia ou a abordagem”, indica.
“A história dos buracos na nuca e a caverna no Afeganistão são detalhes dignos de histórias em quadrinhos”, lamenta o pesquisador Lluis Montoliu, especialista na busca de tratamentos para doenças raras. A única possibilidade medianamente racional seria uma terapia genética que permitisse reparar os genes afetados em um número significativo de células da menina. Para fazer isso, explica Montoliu, seria necessário colocar nessas ferramentas CRISPR em vírus, algo que só foi feito em animais em muito poucas doenças, tais como a distrofia muscular e a retinose pigmentosa.
Ninguém fez nada semelhante ainda em seres humanos. E muito menos em 2008, quando os pais de Nadia começaram a fazer campanhas para arrecadar dinheiro. Izpisúa diz que não conhece o caso e que seu trabalho em ratos não pode ser levado à clínica imediatamente. Seriam necessárias outras experiências em animais, testes de toxicidade, testes de segurança e autorizações das autoridades. Só foram aprovados dois testes com CRISPR em humanos: um na China, num caso de câncer de pulmão; e outro nos EUA, com pacientes com mieloma, sarcoma e melanoma. “Nunca tive qualquer contato com essa pessoa”, enfatiza Izpisúa.
“Seria impossível realizar uma operação dessas em segredo. E seria criminoso”, acrescenta Montoliu. O pesquisador, do Centro Nacional de Biotecnologia, lamenta as sombras no caso da menina Nadia. “É uma pena, porque basta surgir um caso fraudulento para arrasar a credibilidade de outras famílias de crianças com doenças raras”.
Um ex-DJ na lista de devedores
Fernando Blanco disse que todo o dinheiro arrecadado é destinado para os cuidados com sua filha, Nadia, embora não apresente nenhum recibo: “Há o dinheiro com que paguei muitos médicos, que me pediram pagamento em espécie. Muitíssimos, também na Espanha, em hospitais. Não posso dizer seus nomes porque posso precisar deles para algo relacionado a Nadia”. Blanco diz que as contas da Associação Nadia Nerea para a Tricotiodistrofia e Doenças Raras, registada nas Ilhas Baleares, são auditadas. No entanto, depois de ter se comprometido na quarta-feira à tarde a enviar o documento do último ano auditado (2014), Blanco parou de atender o telefone. A associação não pertence à Federação Espanhola de Doenças Raras.
Nem Blanco e nem a mãe de Nadia têm imóveis em seus nomes, de acordo com o Registo Predial. O pai relata que, entre muitos outros empregos, trabalhou como DJ em Ibiza e comprou um Porsche amarelo “num leilão por 80.000 pesetas (cerca de 480 euros, ou 1770 reais)”. Ele não esconde que teve uma juventude bastante animada. E admite que teve “problemas com a polícia por agressões”. “Sou muito impulsivo”, reconhece.
Blanco admite que em 2007, quando Nadia tinha dois anos, foi chamado para depor como preso por uma suposta fraude e falsificação de documentos depois de ter pedido crédito para comprar um Fiat Stilo de segunda mão em Palma. Argumenta que teve de pedir dinheiro emprestado a fraudadores porque figurava no Registo de Aceptaciones Impagadas (RAI), uma lista de devedores.
Quase 10 anos antes desse episódio, Blanco teve problemas com a Justiça por não ter pago a hipoteca do apartamento de 100 metros quadrados com terraço que dividia na capital de Ibiza com sua então parceira, M.I.R. A financeira reclamava 12 milhões de pesetas (72.000 euros), como consta no Boletim Oficial do Estado.
O apartamento foi leiloado em 1999. “Como consequência da minha separação, o de sempre: eu não pago, você não paga... Isso foi há muitos anos, não tem nada a ver com a minha filha, que não tinha nascido," explica Blanco.
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