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Bob Dylan abre a porta do céu literário

O Nobel de Literatura para o músico é um reconhecimento da revolução cultural dos anos sessenta

Diego A. Manrique
Dylan, num escritório a favor dos direitos civis dos EUA, em 1963, em Greenwood (Mississippi).
Dylan, num escritório a favor dos direitos civis dos EUA, em 1963, em Greenwood (Mississippi).Danny Lyon (Magnum Photos)

Depois de anos sendo um candidato improvável, Bob Dylan ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. A Academia Sueca justifica finamente: “Por criar novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção norte-americana”. A eleição tem, no entanto, outras leituras: de alguma forma, reconhece a revolução cultural dos anos sessenta, da qual Dylan foi um catalisador essencial. A escolha também será interpretada como um triunfo geracional dos chamados baby boomers.

Revisando a programação do último festival Desert Trip, realizado na Califórnia na semana passada, as pessoas especulavam sobre a relativa importância de cada participante: Dylan, Rolling Stones, Paul McCartney, Neil Young, The Who, Roger Waters. Deixemos de lado fama e vendas: é evidente que só um deles tem categoria de mestre. Uma palavra muito desgastada, mas que aqui se aplica literalmente: todos os demais convidados estudaram os discos de Dylan, desde 1965 ou mesmo antes. As letras de rock mudaram radicalmente a partir de seus primeiros álbuns. Ampliaram sua temática, enriqueceram suas técnicas expressivas, buscaram fôlego poético, se ampliaram. Tem uma frase que diz acertadamente: “Elvis libertou o corpo, Dylan libertou a mente.”

Ele começou roqueiro (escutem Mixed Up Confusion, seu primeiro single, de 1962), mas se mimetizou com o ambiente de Greenwich Village, em Nova York. Transformado em folk singer, logo superou seus preceptores na acidez de suas canções políticas e em seu agridoce repertório amoroso, forjando um cancioneiro pessoal que oscilava entre o surrealismo e monólogos interiores particularmente torrenciais. Avisou sobre a mudança de perspectiva com o álbum Another Side of Bob Dylan (1964). Mas ninguém estava preparado para a tempestade de decibéis que viria no ano seguinte.

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Exemplo moral

Dylan também tem sido um exemplo moral. Resistiu às críticas mordazes da esquerda e às vaias ocasionais que vieram na esteira de Like a Rolling Stone. Após liderar – sem pretender – a insurgência juvenil, em 1966 ele saiu de cena justo quando a contracultura saltava da boemia às massas. Priorizou sua família sobre aquela teórica revolução e recebeu sopapos sem cessar. Sua casa de Nova York foi assediada por patéticas manifestações de fiéis que exigiam que tomasse de novo a bandeira da rebelião.

Não fez isso, embora ocasionalmente tenha extravasado sua ira contra a injustiça social (por exemplo, com Hurricane e a menos conhecida George Jackson). Insistia em remar contra a correnteza: lançou um disco de retalhos, Self Portrait (1970), possivelmente em resposta à popularidade dos discos piratas que reuniam suas gravações inéditas. O Velho Testamento havia formado seus alicerces culturais, e nos anos sessenta ele visitou Israel e flertou com o sionismo. Ainda com todos esses precedentes, afastou-se do que restava de seu público quando, em 1978, transformou-se num cristão fundamentalista, produzindo poderosas canções de fogo e enxofre. Como se não bastasse a prédica a ouvintes pouco religiosos, ele reforçava seus concertos com sermões apocalípticos cuja leitura – o pintor Francisco Clemente reuniu-os num livrinho de sua editora, Hanuman – ainda gera reações intempestivas.

Já nos anos oitenta, Dylan desistiu de evangelizar sua paróquia descrente. Iniciava uma peregrinação aparentemente marcada pelo desespero profissional. Colocou-se às ordens dos produtores de sucesso que prometiam reaproximá-lo dos compradores de discos: Mark Knopfler, Arthur Baker, Daniel Lanois, David e Don Was; até mesmo se renderia à moda com um descuidado MTV Unplugged (1995). Sofreu uma aterradora etapa de falta de inspiração para compor, que disfarçou com coleções de músicas folclóricas, como Good as I Been to You (1992) e World Gone Wrong (1993). Naquela época, seu filho Jakob tornou-se campeão de vendas à frente da banda The Wallflowers.

Em seguida, Dylan fez turnês com Tom Petty & the Heartbreakers e com os integrantes do Grateful Dead – para quem a empreitada foi especialmente desastrosa (“Ele tocava músicas que nós não tínhamos ensaiado e que ele tampouco dominava”). Mas teve uma revelação, como contou em Crônicas, o único volume publicado de uma prometida trilogia autobiográfica: descobriu uma maneira de reinventar suas canções, sem se importar que parecessem irreconhecíveis. E confirmou sua vocação de músico itinerante. Desde 1988, fez cerca de 100 apresentações por ano, ritmo que nenhum de seus companheiros de rock se atreveu a imitar.

Todas essas guinadas foram acompanhadas de mistério. A maioria das entrevistas de Dylan à imprensa se caracterizam por seu tom evasivo e arisco. Por ser o cantor mais analisado do planeta, objeto de uma imensa bibliografia, ele soube manter muitos segredos sobre sua vida privada. Somente em 2001, graças a uma investigação do britânico Howard Sounes, soube-se que ele esteve seis anos casado com Carolyn Dennis, corista de seu grupo gospel, com quem teve uma filha. Volta e meia ele nos dá uma surpresa que sugere uma mente inquieta, que não pode se deter, inclusive com exposições de pinturas e materiais forjados...

Sem acrobacias

E eis que Dylan resolveu gravar de novo. Nada de acrobacias no estúdio: desde Love and Theft (2001) ele cuida das próprias produções, sob o pseudônimo de Jack Frost, apoiado por sua banda e alguns amigos. O som e os arranjos são agora formalistas. Desde 1997, os ventos sopram a seu favor. Naquele ano, teve uma pericardite (inflamação do tecido que envolve o coração) que esteve a ponto de mandá-lo ao “encontro de Elvis”. Foi um golpe forte para seus seguidores, que o consideravam quase indestrutível. Isso fez suas excentricidades parecem mais aceitáveis. Do tipo: tocou para João Paulo II? “Tirou dinheiro do Vaticano”. Foram detectados plágios em canções e textos? “Está recuperando autores esquecidos”. Faz propaganda de bancos ou carros? “Faz piada do consumismo de nossa época”. O reconhecimento recebido de Estocolmo confirma que até mesmo o establishment literário rendeu-se às suas idiossincrasias. Um reconhecimento definitivo para uma vida tão intensa e criativa.

Estratégia comercial

Para Dylan, ainda bem que existe Jeff Rosen – o homem que racionaliza sua atividade e organiza suas turnês. Desde 1991, Rosen confecciona a Bootleg Series, já com 12 edições: minuciosos resgates de performances diretas e filmagens alternativas que antes eram território exclusivo de piratas. Rosen tem adquirido material gráfico e fitas de áudio e vídeo para diferentes projetos: dizem que realizou as entrevistas do documentário No Direction Home, que logo depois Scorsese se encarregaria de montar. Assim, alternam-se os discos frescos com os históricos: este ano será a vez de Fallen Angels, a segunda parte de sua homenagem a Sinatra com uma amostra integral dos turbulentos concertos de 1966.

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