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Tribuna
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O preço da paz

Eu não tinha isso tão claro antes de ler o artigo de Héctor Abad Faciolince. Mas agora, se fosse colombiano e pudesse votar, eu também votaria no “sim”

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Os bons artigos me agradam quase tanto quanto os bons livros. Sei que não são muito frequentes, mas não ocorre o mesmo com os livros? É preciso ler muitos até encontrar, de repente, aquela obra-prima que ficará gravada em nossa memória, onde irá crescendo com o tempo. O artigo que Héctor Abad Faciolince publicou no EL PAÍS em 3 de setembro (Já não me sinto vítima), explicando as razões pelas quais votará “sim” no plebiscito em que os colombianos decidirão se aceitam ou rejeitam o acordo de paz do Governo de Santos com as FARC, é uma dessas raridades que ajudam a ver claro onde tudo parecia borrado. A impressão que me causou me acompanhará por muito tempo.

Abad Faciolince conta uma trágica história familiar. Seu pai foi assassinado pelos paramilitares – ele transformou aquele drama em um livro memorável: El olvido que seremos (o esquecimento que seremos) –, e o marido de sua irmã foi sequestrado duas vezes pelas FARC, para lhe arrancarem dinheiro. Na segunda vez, os compreensivos sequestradores até mesmo lhe permitiram pagar seu resgate em confortáveis parcelas mensais ao longo de três anos. Compreensivelmente, este senhor votará “não” no plebiscito. “Não sou contra a paz”, explicou ele a Héctor, “mas quero que esses sujeitos paguem com pelo menos dois anos na cadeia”. Causa-lhe indignação que o custo da paz seja a impunidade para quem cometeu crimes horrendos dos quais foram vítimas centenas de milhares de famílias colombianas.

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Mas Héctor, entretanto, votará “sim”. Acha que, por mais alto que pareça, é preciso pagar esse preço para que, depois de mais de meio século, os colombianos possam enfim viver como pessoas civilizadas, sem continuar matando uns aos outros. Do contrário, a guerra prosseguirá de modo indefinido, ensanguentando o país, corrompendo suas autoridades, semeando a insegurança e a desesperança em todos os lares. Porque, depois de mais de meio século de tentativas, para ele ficou demonstrado que é um sonho acreditar que o Estado pode derrotar de maneira total os insurgentes e levá-los aos tribunais e à prisão. O Governo de Álvaro Uribe fez o impossível para conseguir isso e, embora lograsse reduzir os efetivos das FARC à metade (de 20.000 para 10.000 homens em armas), a guerrilha continua aí, viva e fustigando, assassinando, sequestrando, alimentando-se do e alimentando o narcotráfico, e, sobretudo, frustrando o futuro do país. É preciso acabar com isso de uma vez.

O acordo de paz funcionará? A única maneira de saber é colocando-o em marcha, fazendo todo o possível para que o acordado em Havana, por mais difícil que seja para as vítimas e suas famílias, abra uma era de paz e convivência entre os colombianos. Assim foi feito na Irlanda do Norte, por exemplo, e outrora ferozes inimigos agora, em vez de balas e bombas, trocam argumentos e descobrem que, graças a essa convivência que parecia impossível, a vida é mais vivível e, graças aos acordos de paz entre católicos e protestantes, se iniciou uma era de progresso material para o país, que, infelizmente, o estúpido Brexit ameaça mandar ao diabo. Também se fez do mesmo modo em El Salvador e na Guatemala, e desde então salvadorenhos e guatemaltecos vivem em paz.

A romântica revolução dos barbudos serviu para que milhares de jovens latino-americanos se sacrificassem inutilmente

Os ares da época já não estão para as aventuras guerrilheiras que, nos anos sessenta, só serviram para encher a América Latina de ditaduras militares sanguinárias e corrompidas até a medula dos ossos. Empenhar-se em imitar o modelo cubano, a romântica revolução dos barbudos, serviu para que milhares de jovens latino-americanos se sacrificassem inutilmente e para que a violência – e a pobreza, claro – se espalhasse e causasse mais estragos do que aquela que os países latino-americanos arrastavam fazia séculos. A lição nos foi educando pouco a pouco, e é por isso que hoje há, de um confim a outro da América Latina, consensos amplos em favor da democracia, da coexistência pacífica e da legalidade, ou seja, uma rejeição quase unânime das ditaduras, das rebeliões armadas e das utopias revolucionárias que mergulham os países na corrupção, na opressão e na ruína (leia-se Venezuela).

A exceção é a Colômbia, onde as FARC demonstraram – creio que, sobretudo, por causa do narcotráfico, fonte inesgotável de recursos para provê-las de armas – uma notável capacidade de sobrevivência. Trata-se de um anacronismo flagrante, pois o modelo revolucionário, o paraíso marxista-leninista, é uma enteléquia na qual ainda acreditam somente grupelhos de obtusos ideológicos, cegos e surdos para os fracassos do coletivismo despótico, como testemunham seus dois últimos tenazes supérstites, Cuba e Coreia do Norte. O surpreendente é que, apesar da violência política, a Colômbia seja um dos países com uma das economias mais prósperas na América Latina e onde a guerra civil não desmantelou o Estado de Direito e a legalidade, pois as instituições civis, ainda que mal, continuam funcionando. E é certo que um incentivo importante para que os acordos de paz se concretizem é o desenvolvimento econômico, que, sem dúvida, trarão consigo, certamente em curto prazo.

O modelo revolucionário é uma enteléquia na qual ainda acreditam somente grupelhos de obtusos ideológicos

Héctor Abad diz que essa perspectiva estimulante justifica que se deixe de olhar para trás e se renuncie a uma justiça retrospectiva, pois, caso contrário, a insegurança e a sangria continuarão sem fim. Basta que se saiba a verdade, que os criminosos reconheçam seus crimes, de modo que o horror do passado não volte a se repetir e fique aí, como um pesadelo que o tempo irá dissolvendo até desaparecer. Não há dúvida de que existe um risco, mas qual é a alternativa? E, ao seu ex-cunhado, faz a seguinte pergunta: “Não é melhor um país onde os seus próprios sequestradores estejam livres fazendo política em vez de um país em que esses mesmos sujeitos estejam perto da sua propriedade, ameaçando os seus filhos, meus sobrinhos, e os filhos dos seus filhos, seus netos?”.

A resposta é sim. Eu não tinha isso tão claro antes de ler o artigo de Héctor Abad Faciolince, e muitas vezes me disse nestas últimas semanas: que sorte não ter que votar nesse plebiscito, pois, de verdade, me sentia sendo repuxado entre o “sim” e o “não”. Mas as razões deste magnífico escritor, que é também um cidadão sensato e íntegro, me convenceram. Se fosse colombiano e pudesse votar, eu também votaria no “sim”.

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