A memória seletiva da ética
Na busca por direitos individuais, passamos um rolo compressor sobre a noção de coletivo

Diante de tanta gente defendendo suas próprias bandeiras e lutas, em nome da democracia e não raro sobrepondo-as às dos outros, a palavra "direitos" parece unânime nas falas e notícias, enquanto "deveres" está virtualmente ausente. Será paranoia ou autoilusão? Crescentemente encafifados, recorremos ao oráculo Google. "Ter direitos" gera 284.000 hits; "ter deveres", tão somente 7.300. Não deixa de ser indicativo de uma curiosa noção de construção democrática.
Não resistimos e fizemos um post no pervasivo termômetro social que responde pelo nome de Facebook. Muita gente reagiu solidarizando-se com nosso desconforto; mas várias pessoas retrucaram, com alguma ou muita indignação, por pressupor que "direito" invariavelmente se refere a cidadãos e "dever" integra a esfera do Estado. Bem, é compreensível que diante de um Estado historicamente glutão e esbanjador, a sociedade esteja pelas orelhas de pagar muito e receber pouco e, diante disso, que a mera menção a "deveres" seja sinônimo de mais por menos.
Traumas à parte, clamar por mais direitos, ou seja, respeito e responsabilidade por parte de nossos governantes, não deveria implicar em desrespeitar e ser irresponsável para com nossos vizinhos. Onde ficam os limites entre direitos e deveres, duas teóricas metades da laranja que, na prática, acabam se transformando em palco de embates? São estudantes que invadem a reitoria da universidade para fazer suas exigências, enquanto outros se manifestam para que o protesto pelos direitos dos colegas não lhes tolha o direito de ter aulas. Rodovias são bloqueadas por membros do movimento sem teto, indignados com o atraso no cumprimento de suas expectativas de direitos, transformando a vida dos motoristas que nada lhes devem em um inferno dantesco. No nosso projeto de democracia, o limite da ética se esquece do espaço do outro. Todos clamamos por um país sem corrupção, desde que as pequenas corrupções do quotidiano de cada um não sejam afetadas; todos queremos ruas limpas, mas a culpa por termos vias emporcalhadas é da empresa que não limpa a sujeira que é contratada para limpar, já que lixo nasce por combustão espontânea. Na busca por direitos individuais, passamos um rolo compressor sobre a noção de coletivo. A conta, claro, não fecha.
Há duas décadas o deliciosamente ousado Antanas Mockus, ex-prefeito de Bogotá, causou frisson em sociedades vizinhas ao cunhar e praticar o conceito de cultura cidadã. Afinal, em uma sociedade convulsa, a instância tradicional de justiça - aquela, representada pela deusa romana Justitia, com seu fiel da balança perpendicular (dritto, direito) ao chão - não faz sentido. No Brasil de tempos recentes, a Operação Lava Jato trouxe um laivo de esperança de resgate dessa imagem, mas ainda há muito por fazer, sempre e quando queiramos de fato assumir a responsabilidade de sermos uma democracia. Do mesmo modo, em uma sociedade transtornada por privilégios de alguns e privações de muitos, os conceitos de foro íntimo e ética se dissolvem no ar e o que não é ilegal não é visto como imoral.
Nesse quadro, a chance de termos uma sociedade viável, convivível e madura é a tal cultura cidadã - o olhar do e sobre o outro, que nos faz sentir bem ao sermos reconhecidos por agirmos de forma socialmente correta; ou vergonha ao pisarmos em falso. Em suma, para recuperar a percepção de que o meu direito termina onde o seu começa, é preciso voltar a reconhecer a existência do outro e se reconhecer pelo olhar do outro, algo que parecemos ter esquecido há muito.
Voltemos ao Facebook. Levante a mão quem não delistou ou foi delistado ao dizer que foi ou não às manifestações, que é contra ou a favor do impeachment e mais, que se sentiu aliviado por não ter mais de discutir com aquele chato de plantão. Porque, claro, o chato sempre é o outro. Difícil exercício, o dessa tal democracia.
Ana Carla Fonseca e Alejandro Castañé são sócios da Garimpo Soluções, consultoria de economia criativa.
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