Franzen: “Se você é um jovem esperto, é difícil imaginar que há solução para os problemas”
O norte-americano, um dos maiores escritores da atualidade, lança novo livro no Brasil 'Pureza' (Cia das Letras) é um romance não muito otimista, mas espirituoso, como o autor
Pegue os seguintes elementos e misture em doses parecidas e ordem aleatória: jovens, Internet, segredos, política e encrenca. É toda a receita que você precisa para se aproximar de Pureza, o romance mais recente do escritor norte-americano Jonathan Franzen – considerado um dos mais importantes (vivos) hoje. Ao menos, Franzen prefere que o encontro seja assim, sem spoilers. Seu livro acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, depois de uma trajetória de um ano, que começou nos Estados Unidos e já passou pela Europa – onde o autor é muito admirado –, além de outros países.
Na verdade, entre os europeus, assim como entre seus conterrâneos, Franzen – que esteve em Paraty para a Flip em 2012 – é bastante criticado também. Mas isso talvez se deva mais ao fato dele ter fama de mal-humorado e de ser um crítico ferrenho das redes sociais. Essa ideia, porém, é uma das que podem ser desconstruídas pelo leitor de Pureza. A história se concentra em Pureza Tyler, que tem 23 anos, coleciona fracassos, é apegada à mãe e prefere ser chamada de Pip. Logo caminha para uma rede conspiratória envolvendo um importante espião-ativista da Internet, nos moldes de Edward Snowden, e um jornalista investigativo. Tem muito sobre os contras, mas também os prós da rede.
Ao EL PAÍS, Jonathan Franzen falou de Nova York ao telefone e foi capaz de desconstruir outra ideia que paira sobre ele – a do mau humor. Discorreu com firmeza, mas também com simpatia, sobre seu livro, as críticas, as eleições norte-americanas (o voto dele é de Hillary Clinton) e até a crise brasileira.
Pergunta. Você disse, certa vez, na Feira do Livro de Guadalajara, que “quanto mais um romancista fala de seu romance, mais corre o risco de matá-lo”. O que você pode nos dizer sobre seu novo livro, Pureza, sem matar nada, nem ninguém?
Resposta. De fato, tenho três palavras para falar do livro com segurança: “Por favor, leia”. Dito isso... Noto – e é um pouco frustrante – que na imprensa ninguém fala sobre a parte central da história, que, a meu ver, é o casamento de Tom e Anabel. Esse é o coração do livro, pelo qual quase me matei escrevendo. Outra frustração minha é que, sobretudo na Europa, muitas pessoas se concentram na relação entre Internet e privacidade e a usam para descrever Pureza, como se o romance fosse sobre isso. Ou pior: dizem que ele é uma espécie de “cruzada contra a Internet”. Foi o título de uma matéria do próprio EL PAÍS. Sério? Cruzada contra a Internet? Eu diria que não... Poucos falam de Leila, uma personagem que me orgulha muito. E ninguém fala sobre a arma nuclear que desapareceu [risos]. São coisas que foram importantes para mim ao escrever. É o que eu falaria sobre o livro, mesmo sem acreditar que seja possível explicá-lo.
"'Uma cruzada contra a Internet', sério? Eu diria que não"
P. Mas você é visto como um intelectual que discute questões relacionadas à Internet. E elas aparecem em Pureza. Como, do seu ponto de vista, a personagem principal, Purity Tyler, é capaz de nos mostrar mais de um lado da moeda que é a rede? A Internet pode ser boa e ruim ao mesmo tempo.
R. Tenho três maneiras de me comunicar. Uma delas são as declarações que faço publicamente, em entrevistas como esta. Outra é quando escrevo como crítico ou ensaísta. Por fim, estão os romances – a parte mais importante da minha comunicação. É mais provável que eu diga coisas radicais sobre mídias sociais se você me entrevistar, ou então em textos formais, nos quais me disponho a criticar esse universo. Nos livros tenho de fazer exatamente o oposto. É onde eu argumento contra mim mesmo e tento criar um mundo no qual não fica claro quem está certo e quem está errado. É o meu trabalho como escritor e é uma forma muito, muito difícil de comunicação. Um romance tenta representar o mundo, e no mundo real realmente não fica claro quem tem a razão.
P. Pip, a protagonista, me remete a uma existência anônima no mundo contemporâneo. O anonimato foi um tema para você – ou essa é só minha maneira de ler a história?
R. Eu nunca me colocaria entre você e o livro. Acho que cada leitor interpreta a história à sua maneira. O título sugere que eu estava interessado em vários tipos de idealismo – em versões utilitárias e lucrativas de pureza, na redenção de crimes cometidos no passado etc. Me pareceu divertido que esse personagem principal não ligasse muito para a pureza em geral. Pip não é uma idealista, como muitos dos jovens reais que conheço. Ao menos, não como eu era. Mas cheguei a entender, porque conheci mais gente jovem, que essa geração está lidando com um mundo de cabeça para baixo e, se você é jovem esperto nos dias de hoje, é muito difícil imaginar que existe alguma solução para os problemas que estamos enfrentando. Em certo sentido, os jovens de hoje são muito mais adultos do que eu era na minha época. Porque eu tinha toda aquela raiva louca, um engajamento utópico que acho que as pessoas não sentem mais.
P. E por que você escolheu um personagem feminino para conduzir essa história? Alguma razão especial para sua Pureza de hoje ser uma mulher?
R. Meus romances são equilibrados nesse sentido, entre personagens masculinos e femininos. Devoto o mesmo número de páginas a cada lado [risos]. O fato é que 50% dos habitantes do mundo são mulheres, e eu gostaria de emular essa realidade no meu próprio trabalho. Além disso, sou psicologicamente metade mulher, tenho essa capacidade dentro de mim. Se posso fazê-lo, por que não?
P. Você se importa com as críticas, de alguma maneira?
R. Não muito. Não espero que todos, unanimemente, digam “esse romance é maravilhoso”. Porém, espero que ele possa alcançar o leitor com o qual me preocupo – que procura intensidade psicológica, ri de coisas que outros não necessariamente acham engraçadas e se arrisca com algo que outros podem não entender. E muitos críticos pelo visto não entendem. Mas... o que vou fazer? Se eu vivesse na China, ficaria claro, como escritor, que eu estaria fazendo algo errado se todo mundo estivesse de acordo comigo. Ser escritor, para mim, passa por ir exatamente aos lugares mais sensíveis da sociedade, porque isso é o que mais gera ansiedade, vergonha ou raiva e, portanto, gera a experiência de leitura mais intensa nas pessoas. Mas, se você vai por esse caminho, podem tentar te calar. O escritor deve ir contra os que se acham mais espertos, contra todo tipo de concentração de poder. Claro, grande parte desse poder está hoje na Internet.
"Ser escritor, para mim, passa por ir aos lugares mais sensíveis da sociedade, porque isso é o que mais gera ansiedade, vergonha ou raiva nas pessoas. Mas, nesse caminho, podem tentar te calar"
P. Você escreveu ensaios em que discorre sobre como o livro tenta sobreviver em um mundo de distrações como o Facebook e o Twitter. A realidade é diferente em cada lugar, mas você acha que as coisas estão melhorando para a literatura?
R. Tenho sido otimista todo esse tempo. Há dez anos, as pessoas falavam “o mundo será totalmente novo em dez anos, porque a mídia eletrônica irá prevalecer”, mas parece que era muito cedo para afirmar isso. Pessoas que levam vidas difíceis, sem privilégios, usam a tecnologia como consomem cigarros. Se algo te incomodar, você pode fumar ou descarregar seu incômodo no Twitter e assim ir sobrevivendo àquele dia. Por outro lado, algumas pessoas atingem o ponto em que sentem superestimuladas e pensam “eu realmente gostaria de passar um tempo sozinho e mergulhar num livro”. As que podem fazer isso são privilegiadas, mas é algo que está acontecendo mais e mais.
O editor de tecnologia do New York Times escreveu uma coluna em que disse: “Talvez todos devêssemos parar de usar o Twitter. Porque parece estar enlouquecendo as pessoas. Talvez não fosse o que a gente esperava”. Alguns concordaram com essa ideia, que vem ganhando força, e passaram a analisar de perto como estavam gastando seus dias e pensaram “essa tecnologia deveria me libertar, mas no lugar disso me sinto inflamado por ela”. Se o romance vai sobreviver, nós não sabemos, temos que esperar para ver. Queremos respostas imediatas, mas temos que dar tempo para as pessoas se ajustarem a essas novas tecnologias.
P. Para terminar, o que você opina sobre a disputa às eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016?
R. É engraçado ver, nas mídias sociais, como o establishment político está sendo virado de cabeça para baixo. Porque ele não prestou atenção àquilo com que as pessoas realmente se importavam. Tanto Donald Trump como Bernie Sanders são rebatidos o tempo todo por quem se sente frustrado. O fenômeno Trump é especialmente terrível, porque o discurso dele é totalmente irresponsável, em grande parte desonesto e carregado de ódio. E é isso o que guia a campanha dele. O que há de errado com as mídias sociais? Não parece promover um discurso civilizado. Os dois lados simplesmente não estão se comunicando. O establishment político, ao menos, forçava os dois lados a se sentar na mesma sala. Nas redes, você tem dois universos alternativos, mas que não se comunicam.
P. Sou obrigada a fazer mais uma pergunta. Você está familiarizado com a crise brasileira, também muito narrada através das redes sociais?
R. Com certeza. Ao ler sobre o assunto, no entanto, é difícil separar os fatos relacionados ao impeachment da confusão geral. Mas estou consciente de que a crise foi altamente inflamada pela Internet. É uma coisa estranha, porque se vivêssemos em vilarejos com 300 pessoas, o chefe do vilarejo teria de escutar o que as 300 dizem. Se elas ficassem realmente bravas com o líder, não importa o que ele fez, é hora de um novo líder. Porém, a coisa muda de figura se falamos de um país democrático de 200 milhões de habitantes. Porque não é mais pessoal, torna-se uma questão de números, de representatividade. É o que vejo aqui nos Estados Unidos, e também no Brasil. Acho que, no fim, estamos falando de democracia digital, uma expressão estranha, mas frequentemente usada para se referir à democracia representativa hoje. Para mim, isso não é democracia. É um motim.
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