Pergunte-se em que momento você começou a ser, para ela, um imbecil
Lembre-se como você era seu herói: como ela acreditava que você era capaz de consertar tudo
Passe um bom tempo no supermercado. Empenhe-se. Você nem sempre vai às compras, por isso dedique-se com entusiasmo. Olhe a lista que fizeram juntos: farinha, ovos, café. Quando não encontrar o que está procurando – aquilo que figura na lista com todo detalhe: marca, quantidade – pergunte a si mesmo: “O que ela compraria?”. Escolha de acordo. Depois de um tempo, verifique se está faltando algo e dirija-se ao caixa. Pague. Caminhe até sua casa com orgulho, as sacolas pendendo dos braços potentes. Sinta-se como um caçador-coletor que retorna à caverna com a presa no ombro. Ao chegar, anuncie: “Cheguei!”. Veja-a se aproximar caminhando pelo corredor, com aquela atitude que tem nos últimos tempos, como se se sentisse incomodada, irritada com algo que você não consegue saber o que é. Ponha as sacolas na mesa e comece a tirar a mercadoria. Diga: “Aqui estão o chá, a farinha...” Ouça-a dizer: “Essa não é a farinha que te pedi”. Diga: “Não tinha, mas trouxe esta que parecia igual.” Ouça-a dizer: “Não é igual. É mais grossa.” Sinta, dentro de você, uma comichão, um misto de tristeza e raiva. Diga: “Tudo bem, vou trocar.” Ouça-a dizer: “Não precisa ir lá só para trocar um pacote de farinha. Vamos usar em alguma coisa.” Não responda. Veja no rosto dela aquela expressão que te causa medo e alarme: um gesto rígido de reprovação muda, como se todo o seu ser estivesse lhe dizendo: “Não se pode confiar em você, não faz nada direito.” Lembre-se como, até recentemente, você era seu herói: como ela acreditava que você era capaz de consertar tudo: um cano quebrado, a falta de dinheiro, e até o clima. Diga: “Trouxe mirtilos.” Ouça-a dizer, já de costas, afastando-se pelo corredor: “Tudo bem. Você gosta.” Pergunte-se como, por quê, em que momento você começou a ser, para ela, um perfeito imbecil.
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