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Melilla, um bem-sucedido fracasso moral

Esta cidade fortificada é um modelo impecável de rechaço à imigração, mas comprova as brechas éticas da cerca e da política da UE

Um cidadão sírio residente no CETI de Melilla escreve no braço, pedindo ajudaVídeo: ANTONIO RUIZ / EL PAÍS TV

O guarda civil acende um Winston ao baixar do veículo utilitário e olha a cerca de Melilla, da colina de onde melhor se vê. Na colina de Rio Nano, um ponto sensível. Por isso ali ainda há alambrados cortantes, as concertinas, e mede até oito metros. Restam 2,5 quilômetros de cerca desse tipo, de um total de 11,5. Você se segura na cerca, olha para cima e se dá conta de que escalando não chegaria nem à metade. E são três. Mais a nova do lado marroquino que acabam de terminar de construir, e aí, sim, não podem ser cortadas com facas. Marrocos é um caso curiosíssimo de país que não quer que os imigrantes de passagem saiam de suas fronteiras. Por quê? Pois não se sabe, mas é o tipo de coisa que não se faz de graça. É a diferença em relação à Turquia. Pelo menos ali está escrito em um papel, por mais vexatório que seja. A mudança de valores da União Europeia beneficiou Melilla: de referência na violação de direitos humanos por causa da cerca passou a ser um modelo a imitar. Embora nós, europeus, tenhamos crescido com o mito de Steve McQueen saltando com sua moto alambrados como esses, perseguido pelos nazistas em Fugindo do Inferno.

Em seu escritório de Madri, o ministro da Justiça, Jorge Fernández Díaz, está satisfeito: “Estamos fazendo as coisas como devem ser feitas”. Recorda que quando começou a ir a suas primeiras reuniões da UE “isso da fronteira terrestre com a África lhes soava como chinês, o problema não existia”. Agora, tampouco. Melilla se tornou inexpugnável. O ministério dá todas as facilidades para comprovar como se trabalha em Melilla, a Guarda Civil e a Polícia Nacional te ensinam tudo. Trabalham bem. Você entende o ponto de vista deles. Ser radicalmente práticos sem parar para pensar muito, porque, senão, te dá alguma coisa. “Quando você está ali, vendo uma invasão, você sente dor, muita dor. Não somos insensíveis, mas, que me digam como administrar isto! É muito fácil falar estando em um gabinete no norte da Europa”, diz o representante do Governo de Melilla, Abdemalik El-Barkani.

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O comandante da Guarda Civil de Melilla, Arturo Ortega, não dormiu quase nenhuma noite inteira o ano passado. Soava o alarme e ele pulava da cama. Mostra em seu gabinete um vídeo noturno da fronteira onde se veem fileiras de corpos negros em uma paisagem branca, o calor que desprendem na escuridão. O mesmo acontece nos postos de controle de veículos. Os sensores detectam o som do coração. A fome os move, a cor da pele os revela, a temperatura corporal os descobre, os latidos os delatam. Ser humano os trai, representa um acúmulo de problemas. As escassas ONGs que trabalham em Marrocos, acossadas e vigiadas pelas autoridades, sabem disso. A Médicos Sem Fronteiras partiu em 2013.

Segundo as últimas estimativas, agora mesmo há umas 1.900 pessoas vivendo nos sopés do Monte Gurugu, ao lado de Melilla. Várias ONGs coincidem na denúncia de que sobrevivem como animais, sem água potável e perseguidos pela polícia, que quando aparece por ali lhes queima as barracas e as roupas e os espanca. O acampamento principal se chama Bolingo, com umas 700 pessoas, muitas delas mulheres. Há cerca de 120 crianças. A máfia nigeriana é quem manda e organiza as saídas em balsas. De onde mais gente chega nos últimos meses é de Camarões. De onde exatamente? O que acontece por lá? Estão combatendo o grupo fanático islamista que sequestra meninas, o Boko Haram. E nos vendem hidrocarbonetos e nós, pacotes de sopa.

Com suas câmeras, a Guarda Civil os vê chegar, embora seja noite, a cinco quilômetros. Então é ativado “o dispositivo anti-intrusão”. Chamam as forças marroquinas para que lhes bloqueiem a passagem. Mandam o helicóptero. Se conseguem chegar à cerca é o momento culminante. “Somos o último obstáculo, e depois do que essas criaturas passaram isto é um drama, todos temos medo, com 300 pessoas que querem te superar seja como for”, conta um agente. Quando as suas forças acabam, permanecem empoleirados na cerca, às vezes até quatro horas. Tem início um diálogo, normalmente em francês, para convencê-los de que desçam: “Venha, vocês não conseguiram”. “Os do Mali são os mais nobres. Descem e até te pedem desculpas pelo incômodo”, contam os guardas civis. Quando os acompanham à porta costumam dizer que vão tentar outra vez. Depois, oficialmente, nem ideia do que se passa com eles. Você pergunta e todo o mundo se faz de bobo. Do ministro para baixo.

No centro temporário de imigrantes reside um grupo de homossexuais marroquinos perseguido em seu país.
No centro temporário de imigrantes reside um grupo de homossexuais marroquinos perseguido em seu país.Antonio Ruiz

Essa densa paliçada de regras e normas tem brechas morais tampadas só com silêncios, perguntas que ficam sem respostas: O que acontece com essa gente em Marrocos, antes e depois de expulsá-los da cerca? Como é que Marrocos serve de tampão, inclusive com o sírios? Em troca de quê? Estamos nas suas mãos para controlar a imigração? “A estabilidade e a segurança de Marrocos é estratégica para a Espanha”, resume em estrita linguagem política Fernández Díaz, e está pensando em todas as confusões que nos evitam com o jihadismo, narcotráfico e imigração irregular. Há outra pergunta ainda que quase todo mundo responde da mesma maneira: o que aconteceria se a cerca fosse removida? Respondem que nem querem pensar nisso. As soluções no curto prazo não costumam ser justas, mas o fato é que seguimos assim há 20 anos. A UE continua sem uma política de visão ampla.

Na passagem fronteiriça de Beni Enzar uma mulher dá quatro passos em solo espanhol e se deixa cair. É uma mulher negra, mas de pele clara, que conseguiu burlar o controle marroquino se disfarçando de muçulmana, com um véu. Finge que desmaia, como certifica logo um médico, e ali fica sentada, apoiada em um muro. Ao lado há três crianças que também acabam de conseguir passar com a técnica mais em voga: ocultas no fundo duplo de um veículo. Estavam as três no interior de um velho Mercedes 250 de mil anos, embora pareça impossível. O condutor, tão logo entrou em território espanhol, saiu do carro e voltou correndo para Marrocos. Os que estavam presos dentro tiveram sorte porque às vezes simplesmente o carro é deixado abandonado em uma valeta. Se têm sorte, alguém ouve gritos. Chegam telefonemas à delegacia de que há um carro que fala. Assim a Guarda Civil encontrou uma grávida em um tanque de gasolina, tão incrustrada que não podia sair. Tiveram de levá-lo à oficina do quartel para retirá-la. Já estão cobrando 4.000 euros (15.700 reais) pela viagem. Subiu porque a cerca e a balsa estão impossíveis. Se há mais saltos ou passagens pelo Estreito, o preço do carro abaixa. Mas o mais singular atualmente é se enfurnar no painel até de um Renault Clio –cada vez usam carros menores. Nesse estranho jogo de adultos para vencer basta pôr o pé do outro lado da linha, como quando as crianças batem o pique no esconde-esconde. Por alguma razão, porém, isso não vale na cerca. Tão logo chegam, se forem pegos, voltam a ser expulsos. São as famosas devoluções quentes. Todo mundo, ex-policiais, moradores, contam que sempre foi assim, às escondidas e com a cumplicidade da polícia marroquina, mas agora é ainda melhor porque já é legal. Os que pulam e escapam dando no pé, correndo entre olivais e arbustos perfumados, sentindo que conseguiram, chegam ao Centro de Estadia Temporária de Imigrantes (CETI) e ali, enfim, já podem descansar.

Ser sírio não garante nada, embora em seu país estejam há cinco anos massacrando a população civil. São incomodados constantemente. Marrocos não deixa os sírios passarem, como se nada fossem, e é preciso tentar por meio das máfias, pagando. No mínimo, 1.000 euros (3.930 reais por adulto) e 400 euros por criança. No ano passado havia uma curiosa sincronia entre os que chegavam à Espanha e os que saiam do CETI e abriam lugar, sempre o mesmo número. Era ainda mais chamativo que deixassem de passar os fins de semana. Está tudo controlado, embora ninguém confesse como. Ainda estamos desatualizados, trabalhamos com hipocrisia implícita, quando a tendência é explícita, sem dissimulação, consagrada pelo acordo da UE com a Turquia.

Um agente da polícia nacional verifica a identidade de uma marroquina no posto fronteiriço entre Espanha e Marrocos.
Um agente da polícia nacional verifica a identidade de uma marroquina no posto fronteiriço entre Espanha e Marrocos.A. R.

Pior é no caso da Argélia, que conseguiu lhes cortar o caminho. Até 2015 chegavam em avião a Argel ou ao Egito, vindo de Beirute ou da Turquia, e depois iam para Marrocos. Mas o Governo argelino começou a pedir vistos a seus irmãos muçulmanos sírios em 2015 e agora para chegar à Espanha têm de ir pela Mauritânia! Avião desde a Turquia e, depois, pelo deserto através da Argélia. Famílias com crianças. O extenso relatório anual da ONG jesuíta CeiMigra acusa a diplomacia espanhola de “pressionar Argélia e Marrocos para que dificultem a passagem da população síria”. Consultado a respeito, um porta-voz do Ministério de Relações Exteriores desmentiu isso “redondamente”.

Há pouco tempo uma mulher com hena nas mãos e aparência marroquina chegou ao posto espanhol, tirou o véu e, por fim, pôde dizer que era síria. Também foi muito comentado o caso de uma menina síria que chegou sozinha, sozinha, ao CETI. Desceu de um táxi, onde alguém lhe disse que fosse caminhando até a porta e foi embora. “As famílias passam a fronteira separadas, conforme conseguem o dinheiro para pagar. Cobram-lhes até 2.000 euros (7.870 reais) para passar, assim estamos fomentando as máfias”, relata Antonio Zapata, advogado de Melilla especializado nos trâmites de asilo e cuidados aos refugiados, que já viu de tudo.

Esperando que aparecesse um sírio na passagem fronteiriça de Beni Enzar, por fim avisam que chegou um e quer pedir asilo. Antes da entrevista oficial com advogado e intérprete conta seus tormentos. Que saiu de Aleppo em 2013, que voou para a Mauritânia, vindo da Turquia, que atravessou o deserto. Dá vontade de chorar. Outras vezes, até de rir. Há pouco tempo veio um que, coitado, tinha duas lojas de lingerie feminina e quando o Estado Islâmico chegou à sua cidade pensou que o melhor era ir embora. O sírio entra na sala para o interrogatório. Dentro há um cartaz em inglês e árabe que diz que os sírios são bem-vindos. E um outro, supõe-se, para os funcionários: “Não ergas a voz, simplesmente melhore os seus argumentos”. O sírio permanece lá dentro uma hora contando sua vida, mas quando sai o fato é que não é sírio. Pegaram-no em algumas contradições. É um rapaz marroquino que deve ter algum problema grave em seu país e quer fugir. Chora para que o deixem passar, mas não há nada a fazer. Enquanto os sírios são toureados para que não cheguem, outros se fazem passar por sírios em seu lugar. Marroquinos, é certo, também estavam até agora tentando pela Turquia.

O CETI de Melilla fica diante do famoso campo de golfe que saiu em uma foto, com duas pessoas jogando enquanto eram observadas por um grupo de africanos enganchados na cerca. É uma metáfora perfeita do que se imagina, do outro lado, que isto seja. De fato, os subsaarianos que saem do CETI caminham relaxados de chinelos, bebendo suco com um canudinho, em um tédio sonhado, com cama e comida. Saem quatro rapazes africanos para dar uma volta. Pularam a cerca há algumas semanas, embora oficialmente o primeiro salto bem-sucedido de 2016 –fracasso para esta parte– tenha sido em 8 de abril. Um deles conta que estava havia quatro anos vivendo no monte. “Não sei quantas vezes tentei, perdi a conta, mais de 25”, relata. Tem 22 anos. Ao lhe perguntar se foi duro nem responde, olha com dureza. Foram humilhados, espancados, roubados, violados e triturados, mas você sente que têm sua dignidade intacta e não sei se nós podemos dizer o mesmo. O nosso lado parece muito civilizado, mas o dele tem um sentido, embora seja uma loucura. Os demais, do Ministério do Interior para baixo, pode-se até entender, cumprem ordens, mas com esses rapazes que as desobedecem é diferente: eles têm razão. São da Guiné Conacri. Olhe aí mesmo na Wikipedia no celular. A Lógica: “A Guiné é um país muito rico em minerais, incluindo a bauxita, diamantes, ouro e alumínio”. Sem dúvida, é por isso que são chamados de imigrantes movidos por razões econômicas.

Um grupo de marroquinos espera sua vez para levar artigos de primeira necessidade da Espanha a Marrocos.
Um grupo de marroquinos espera sua vez para levar artigos de primeira necessidade da Espanha a Marrocos.A. R.

Pela porta do CETI sai um marroquino vestido em estilo drag queen, seguido de outros. É muito surpreendente. De filme de Almodóvar. Os demais riem e caçoam deles: “Aí vêm os mariquinhas. Eles a Espanha acolhe”. Entre os que passam o tempo na porta há três menores, também marroquinos, que não vivem no centro. Moram na rua, não fazem nada, não se sabe do que vivem. Alguns sofrem abusos, estão há meses em Melilla, se drogam para matar o tempo, ninguém os tiram dali nem mesmo faz quase nada por eles, a não ser alguma ONG. São menas, acrônimo de menores desacompanhados. Só esperam uma ocasião de entrar de penetra em um barco clandestino e partir para a Espanha. O prêmio da loteria se chama Peregar, o navio de mercadorias que uma vez por semana zarpa para a península.

A quarta-feira é o dia de saída do CETI de quem obteve permissão para ir à Espanha, com asilo ou para ser expulso, embora depois a maioria que chega vá para outros países, um fingimento assumido. De 10.000 sírios que entraram por Melilla desde 2013, sem considerar os 18 famosos aceitos da Grécia e Itália, quase todos seguiram adiante. A Espanha é um fracasso de hospitalidade e um sucesso na mudança de direção. Um modelo a seguir.

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