Eduardo Galeano, o eterno caçador de histórias
A um ano de sua morte, o livro póstumo do escritor uruguaio chega às livrarias
Um dia, não muito tempo atrás, depois de ler algumas de suas histórias para um grupo escolar em Salta, no norte da Argentina, Eduardo Galeano recebeu um conselho: “Continua escrevendo, que você vai melhorar”, advertiu uma das crianças por escrito. A carta – uma tarefa pedida pela professora após a leitura – não precisava ter chegado ao uruguaio, morto em 13 de abril de 2015, porque Galeano sempre foi um escritor prolífico e cuidadoso, cuja pluma buscava transcender. O fato é que ele seguiu o conselho até o fim, o que permite aos admiradores de sua prosa amorosa, bem-humorada e certeira ter hoje em mãos um novo livro seu, lançado um ano após a sua morte.
O caçador de histórias circula em espanhol na Espanha, no México, na Colômbia e na Argentina desde 28 de março e deverá sair no Brasil em maio pela L&PM, com tradução ao português de Eric Nepomuceno. São 250 páginas, escritas durante os anos de 2012 e 2013, quando Galeano já padecia de câncer de pulmão, e que o escritor deu por terminadas no verão de 2014 – quando enviou o manuscrito final ao argentino Carlos Díaz, da Siglo XXI, editor de 19 obras suas. Segundo Díaz, o autor de As veias abertas da América Latina – adorado no Brasil, que ele adorava de volta – deixou-o “escrito, corrigido e cuidado em cada detalhe, incluindo a ilustração da capa”, como fazia com cada um de seus livros. Desta vez, só não pôde comparecer à gráfica para colocar o papel contra a luz e checar a impressão, nem pedir ajustes de última hora, como costuma fazer.
“O título também é dele. Ao final, quando estava fechando o livro, um amigo lhe perguntou como era possível que desse esse título, se não era capaz de matar nem uma mosca. Isso o fez pensar, mas ao final voltou à ideia inicial. Eu adoro. Ele era um caçador de histórias. Levava sempre consigo uns caderninhos onde anotava ideias. E se nutria das conversas que tinha com todo mundo, porque era um grande conversador”, disse o editor ao jornal argentino La Nación. O amigo era Eric Nepomuceno, que o traduz desde 1974, quando um dos contos de Galeano foi incluído na coleção Contos jovens, da extinta editora brasiliense.
O caçador de histórias condensa cerca de 240 textos, entre poemas, microrrelatos e histórias pessoais, divididos em quatro partes: Moinhos do tempo, Os contos contam, Prontuário e Quis, quero, quisera. Para Nepomuceno, é “Galeano em estado puro”. “É uma prosa altamente elaborada. São histórias que ele caçou ao longo da vida, com seu olhar único sobre o mundo. Um jornalista espanhol uma vez o definiu como um escritor com um olho no microscópio e outro no telescópio. Isso está claríssimo no livro”, opina o escritor, que conta que, depois de 18 livros traduzidos, essa é a primeira vez que faz uma revisão sozinho. “Já me peguei tendo umas três brigas com o fantasma dele”.
A esposa de Galeano, Helena Villagra, contou à revista cultural do jornal Clarín, a Ñ, que “Eduardo em nenhum momento pensou que não veria este livro publicado”. “Sinto mesmo que não. Inclusive tenho certeza de que ele esperava cruzar a porta de casa, como sempre fazia, feliz de ter em mãos o primeiro livro recém-saído da gráfica, que costumava dedicar a mim. Além disso, ficava fazendo piadas sobre ‘vaso ruim que nunca quebra’, portanto não via as coisas desse ângulo [da morte]”, comentou Villagra.
‘Autobiografia completíssima’
“Nasci no dia 3 de setembro de 1940, enquanto Hitler devorava meia Europa e o mundo não esperava nada de bom. Desde muito pequeno, tive uma grande facilidade para cometer erros. De tanto errar, terminei demonstrando que ia deixar uma profunda marca da minha passagem pelo mundo. Com a sã intenção de aprofundá-la, tornei-me escritor, ou tentei sê-lo. Meus trabalhos de maior sucesso são três artigos que circulam com meu nome na Internet. Na rua as pessoas me param, para me parabenizar, e cada vez que isso acontece começo a desfolhar a margarida: – Me mato, não me mato, me mato... Nenhum desses artigos foi escrito por mim”.
Um trecho de O caçador de histórias.
“Um Eduardo que ninguém viu”
As resenhas em espanhol de O caçador de histórias vêm destacando que, nesta obra, Eduardo Galeano fala mais de sua vida pessoal do que de costume. Na visão de Eric Nepomuceno, essa não é a maior novidade do livro: “Em Dias e noites de amor e de guerra, de 1978, ele faz uma espécie de diário de bordo. É um relato extremamente pessoal, em que fala muito dele, e que rompe com o que tinha feito até então”.
Para Nepomuceno, o estilo de Dias e noites é retomado em Os contos contam, e o grande impacto do novo livro fica, na verdade, por conta da morte – abordada em Quis, quero, quisera. “Nessa parte, ele faz isso de maneira frontal, em textos que para mim são demolidores. É um Eduardo que ninguém nunca viu”.
Mas quem foi íntimo de Galeano garante que ele não era afim ao tema. Helena Villagra diz que “ele se cuidava da melancolia” e “sempre encontrava no humor uma saída para se sentir animado”. Já Nepomuceno cita uma das frases comuns na boca de um autor que era contra tudo o que arruinasse a festa que, para ele, era viver: “Eu vou resistir, ainda que me custe a vida”.
Um latino-americano
Eduardo Germán María Hughes Galeano nasceu em Montevidéu, cidade onde faleceu em decorrência de um câncer de pulmão, aos 74 anos, no dia 13 de abril de 2015. Tinha 31 anos quando publicou uma de suas obras mais conhecidas, As veias abertas da América Latina, que foi proibida pelos governos ditatoriais do Uruguai, do Brasil, do Chile e da Argentina. Em um evento da 2a Bienal do Livro de Brasília, pouco antes de morrer, Galeano chegou a dizer que não leria de novo o livro. Publicou a trilogia Memória do fogo (1982 a 1986), que mistura elementos de poesia, romance e conto para contar a história da América.
Leia trechos de 'O caçador de histórias'
Bendito sejas, riso, sempre
Sagrada família
Brevíssimos sinais do autor
Última porta
Darcy Ribeiro entrava e saía da selva como se fosse a sua casa, e era.
Levava uma bagagem modesta, um livro só e nada mais: uma velha edição espanhola de Dom Quixote de la Mancha.
Estendido numa rede, balançando entre as árvores da floresta amazônica, Darcy desfrutava de seu livro favorito. A cada página soltava uma gargalhada e os meninos riam com ele. Nenhum deles sabia ler, mas todos sabiam rir.
Pai castigador,
mãe abnegada,
filha submissa,
esposa muda.
Como Deus manda, a tradição ensina e a lei obriga:
o filho golpeado pelo pai
que foi golpeado pelo avô
que golpeou a avó
nascida para obedecer,
porque ontem é o destino de hoje e tudo que foi continuará sendo.
Mas em alguma parede, de algum lugar, alguém rabisca:
Eu não quero sobreviver.
Eu quero viver.
Eu bem que poderia ser o campeão mundial dos distraídos, se o campeonato existisse: com frequência erro o dia, a hora e o lugar, e me custa diferenciar o dia da noite, e falto a encontros porque fiquei dormindo.
Meu nascimento confirmou que Deus não é infalível; mas, apesar disso, nem sempre me engano na hora de escolher as pessoas de quem gosto e das ideias nas quais acredito.
Detesto os choramingões, odeio os que vivem se queixando, admiro os que sabem aguentar, calados, os golpes dos tempos ruins, e por sorte nunca falta algum amigo que me diz que continue escrevendo, que os anos ajudam e que a calvície ocorre por pensar demais e é uma doença profissional.
Escrever cansa, mas consola.
Desde que se deitou pela última vez, Guma Muñoz não quis mais se levantar.
Nem mesmo abria os olhos.
Num de seus raros despertares, Guma reconheceu a filha, que apertava a sua mão para dar serenidade ao seu sono.
Então, falou, ou melhor, murmurou:
– Que esquisito, não é? A morte me dava medo. Não dá mais. Agora, me dá curiosidade. Como será?
E perguntando como será, se deixou ir, morte adentro.
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