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Retrato brasileiro de Eduardo Galeano

O escritor uruguaio amava o Brasil, e muitos brasileiros conheciam sua obra Com ele, somos mais América Latina do que nunca

Eduardo Galeano em 2008.
Eduardo Galeano em 2008.Bernardo Pérez

Um pequeno país latino-americano, o Uruguai, chora nesta segunda-feira a morte de Eduardo Galeano, um de seus grandes escritores. O eco desse lamento chega ao Brasil, com milhões de brasileiros que se somam à dor dessa perda, e somos hoje mais América Latina do que nunca. Só Eduardo Galeano, amante do país e – na contracorrente do que é comum acontecer – reconhecido aqui por muitos, seria capaz de orquestrar essa rara comunhão entre dois lados de uma mesma moeda que muitos insistem em descolar.

“O Eduardo sempre teve uma ligação fortíssima com o Brasil desde muito antes de ser conhecido”, diz o escritor Eric Nepomuceno, seu grande amigo e o tradutor de sua obra ao português. Sua primeira visita ao Brasil acontece no final dos anos 60, começo dos 70, quando passou uma longa temporada no Rio de Janeiro, e a partir daí ele se torna um visitante frequente. Literariamente, sua estreia acontece em 1974, quando Eric traduz um de seus contos para um livro da coleção Contos jovens, da extinta editora brasiliense. Dois anos depois, seu Vagamundo, coletânea de contos publicada originalmente em 1973, ganha tradução ao português –, e então já estava estabelecida uma sólida ponte.

“Ele mantinha um trânsito muito fluente com o pensamento e com a arte do Brasil. Dizia que Darcy Ribeiro foi um dos responsáveis pela sua formação. Era muito próximo do Brizola, do Chico, do Caetano”, conta o tradutor sobre seu amigo, que ainda por cima era um louco por futebol. Eles se conheceram em 1973, numa época em que viveram na Argentina e os intelectuais de esquerda “conspiravam por correspondência”. “O Eduardo Gasparian me pediu para entregar ao jornalista uruguaio Alberto Carbone um envelope, que eu nunca soube do que tratava. Depois, o Carbone me levou pra conhecer o Galeano, que estava terminando de pôr de pé a revista Crisis”.

Nos capítulos que seguem, Eduardo Galeano convida Eric para colaborar com essa que foi por vários anos a revista cultural mais importante da América Latina, que o uruguaio dirigiu nos anos em que viveu em Buenos Aires. “Ele me adotou. Ligava pra mim às cinco da tarde e perguntava o que eu estava fazendo. Aí dizia ‘vem pra cá, vamos tomar um café com o Mario’, e era o Mario Benedetti. Ou então ‘o Julio está na cidade, mas ninguém pode saber’, e era Cortázar. Foi tudo muito rápido e muito forte”, relembra Eric, para quem Galeano é “um irmão mais velho”.

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Os anos de chumbo do Brasil foram tema para o escritor, que escreveu Dias e noites de amor e de guerra em parte sobre o país, e também para seu lado de jornalista, quando, ainda jovem, relatava das ruas do Rio de Janeiro o que as pessoas pensavam sobre a ditadura. Ele, próprio, não pensava nada de bom – e em documentos recentes da Comissão da Verdade seu nome aparece em relatórios de espionagem a cidadãos comuns.

Galeano era fã do Rio e não gostava nada de São Paulo, que, como boa megacidade, ele dizia não entender. Uma passagem de Galeano por terras cariocas é especialmente recordada pela jornalista e editora Gabriela Aguerre, uruguaia radicada em São Paulo. “Minha mãe e Eduardo são primos, e nos conhecemos quando eu tinha 15 anos. Ele veio para fazer uma leitura de um livro dele, e me pediu dicas para ler em português, apesar de falar o idioma perfeitamente e com sotaque carioca”, ela conta. “Foram cinco dias em que passamos tempos juntos, caminhávamos, ele fazia anotações em seus microcadernos, que tinham o tamanho de uma caixa de fósforo”. À prima-sobrinha Gabi, ele dava conselhos sobre ser jornalista e escritora como ele, a maioria deles através das cartas que intercambiavam. “Nessa ocasião, fomos à casa do Leonardo Boff, que vivia no apartamento que tinha sido de Darcy Ribeiro. Ele me levou para esse mundo, e eu estava orgulhosa dele ser meu parente”, diz Gabriela, hoje muito mais ligada à literatura que ao jornalismo.

A última passagem de Eduardo Galeano por aqui foi em abril do ano passado, quando a 2a Bienal do Livro de Brasília o homenageou. Falante e carinhoso como sempre, Galeano deu atenção a todos e chegou a criticar duramente o seu As Veias Abertas da América Latina  - uma espécie de Bíblia de cunho político, histórico, literário e afetivo para pensadores, em geral posicionados mais à esquerda, que pinta um duro retrato da região nos anos 70. Eric Nepomuceno conta que o amigo já estava abatido pelo câncer de pulmão que o levou nesta segunda-feira aos 74 anos. Mas lhe contava uma ou outra coisa sobre um livro que estava escrevendo “em papeizinhos de todo tipo, até canhoto de cheque”. É provável que esse livro não exista para ser publicado, diz Eric. Mas, se existir, ele tem caminho e leitores certos aqui no Brasil.

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