Zeca Pagodinho: “Por que o Brasil está assim? As pessoas perderam o romantismo”
Cantor e compositor reivindica o samba de bermuda e chinelo
É uma da tarde de uma quarta-feira e Jessé Gomes da Silva Filho (Rio de Janeiro, 1959) entra como um turbilhão no seu estúdio na Barra da Tijuca, na zona Oeste do Rio. Cumprimenta às pressas e desaparece atrás de uma porta para ressurgir minutos depois sem camiseta, tatuagem de São Cosme e São Damião no peito, barriga sobressaindo acima do cinto, e a cabeça, rosto e pescoço cobertos por uma loção branca anti-alérgica. A cena de Zeca Pagodinho voltando do dermatologista para tratar umas manchas vermelhas no pescoço é apenas um prelúdio do que será este encontro incomum que começa numa sala de reuniões, segue em um carro a caminho de um aniversário de dois sambistas da Portela e, após a festa se frustrar, termina regada a cerveja numa das casas do sambista, um enorme duplex com piscina na beira da praia, na Barra da Tijuca.
Zeca é simpático, carinhoso, irreverente e desafiador e confirma a alergia que sente das obrigações da sua fama. O sambista profissional, “o novo Zeca que dá emprego a muitas pessoas”, sente nostalgia do Zeca anônimo, “o do botequim”.
P. Qual é seu diagnóstico do samba no seu centenário? Acredita que ele perdeu espaço no dia a dia do brasileiro, nos rádios, nas escolas, na rua, nos morros…?
R. Eu não tenho andado muito na rua, mas pelo que eu sei está a todo vapor. No subúrbio, em qualquer botequim de esquina, nos campos de futebol, tem um pagode, uma comida... Continua mesma coisa, mas antigamente era só ali. Hoje o samba ganhou mais espaço, está nos teatros, nos clubes...
P. Sua madrinha artística, Beth Carvalho, acredita que o samba perdeu para o funk nas favelas.
R. Ela vai no morro? Talvez a molecada [gosta de funk], mas a rapaziada mesmo é de samba, é de pagode.
P. O samba está em plena efervescência, então?
R. Poderia melhorar. Antigamente a gente fazia samba para se divertir, para ganhar dinheiro a gente trabalhava. Outro dia estava assistindo ao The Voice e um dos jurados, não lembro como se chama, é um bonitão... bom, tem dois bonitões [Victor e Leo, dupla sertaneja], disse para um dos menininhos: “Fama não é a mesma coisa que ser cantor. Antigamente eu cantava e não era famoso. Depois que fiquei famoso eu já não canto como cantava antigamente e subo ao palco sem vontade nenhuma”. Achei isso de uma sinceridade, tem que ter coragem para falar uma coisa assim... O que ele falou é muito importante. Antigamente a gente tinha prazer, chegava em um lugar e dizia “pô, pega o cavaquinho”.
P. Você se identifica com essa afirmação sobre a fama?
R. Me sinto às vezes desanimado. É tanta aporrinhação até você chegar na hora de cantar que a gente também não tinha. A gente fazia uma comida, chamava o fulano do violão e daqui a pouco o samba ia até a noite. A Jane [a assessora dele] brinca comigo: “porra, tu reclama de cantar hora e meia no palco e vai e canta cinco ou seis horas na Mangueira. Quando eu vou para o morro e encontro os amigos, aí eu...[bate os dorsos das suas mãos no ar].
P. O que está trazendo de diferente a nova geração do samba?
R. Assim, deixa ele mudar. O samba que eu canto, que a minha geração canta, não é o mesmo samba de antes, vai mudando. O samba que tinha no Cacique [de Ramos] não é mais o samba dessa garotada. Quando nós chegamos, os mais velhos também torciam o nariz, tinha uma batucada diferente, eles ficavam putos com a gente, mas a tendência é mudar. Os novos não fazem do nosso jeito, a música é mais melada, cá para nós: poesia pouca. Os versadores de hoje em dia se preocupam em fazer a rima, mas não se preocupam em falar coisa bonita para conquistar uma mulher que está na roda, ou para falar de uma saudade de uma mulher que foi embora... Só se preocupam em rimar, fechar o A com A e o B com B. Não é do nosso jeito, mas o importante é estar cantando, estar fazendo a alegria de alguém.
P. Por que você acha que a poesia se perdeu?
R. Essa é a questão. Por que o Brasil está assim? As pessoas estão violentas, estão agressivas. Acho que tem a ver. Hoje matam criança, batem em mulher... No meu tempo dificilmente você via uma coisa assim. As pessoas perderam o romantismo. O malandro mesmo, ele era elegante, tinha uma mulher bonita, ele chegava no samba, mandava uma caixa de cerveja pra rapaziada, não tinha marra, não falava “nós vai, nós vem”. Talvez você não entenda o que estou te falando.
P. Você já disse também que não há como explicar o samba para um gringo pois nunca vai entender. É um gênero tão complexo assim? Quer tentar?
R. Para mim é a minha alegria. O samba se canta na palma da mão, na ponta da mesa, não é esse samba que hoje eu faço com arranjos, e luzes, e roupa. Esse é o samba que a gente gosta, o do cavaquinho desafinado, o de brincar com o verso, o não profissional. Nas rodas de samba têm gente que é mais sambista do que eu. A classe A vai no samba, vai ao teatro, o bacana vai lá, compra o CD, lê a letra, vê os arranjos, mas ele não vai ali, aonde está o samba, na beira do mar, na pedra que escorrega, com o crioulo de chinelo sambando e comendo com a mão.
P. Você transmite o desejo de largar as obrigações comerciais que ser artista famoso lhe trouxe.
R. Eu ainda frequento os dois ambientes. Por exemplo, na minha casa de Xerém, a gente faz nosso samba, de bermuda e chinelo. Tem uma rapaziada lá, que eu chamo de estraga-samba, que são muito ruins, mas são bons pra carilha. Eles não têm compromisso com gravadora, com jornal, com ninguém. Cantam mal, batucam mal, versam mal, mas é o melhor samba para mim! Eu nem participo, porque não tenho gabarito para entrar ai, é?
P. Você deixou de compor tanto como antes e canta músicas de outros compositores. Como é a relação do sambista e o compositor?
R. Na minha casa a gente escolhe o meu repertório. Numa mesa grandona, botamos um gravador, cada um canta três sambas e eu fico andando... Mas estou ouvindo. De longe, quando eu escuto que o samba é bom eu já olho e faço um sinal. Meu jeito de homenagear os compositores é o [DVD] Quintal do Pagodinho, que vamos gravar agora a terceira edição. A minha ideia é mostrar a cara de quem faz o sucesso. Muitas vezes me dizem: “porra, aquela tua música Deixa a vida me levar”. Ai eu tenho que dizer que a música não é minha. É do Serginho Meriti. Aí, aquele cara que me dá essa música para cantar, aparece nesse DVD cantando. Hoje, todos eles são artistas. Não me ligam mais para dizer que a geladeira quebrou, que não têm dinheiro para pagar o aluguel... É o que a Beth [Carvalho] fez comigo.
P. Seu encontro com Beth Carvalho lançou sua carreira musical. Já imaginou onde estaria Zeca Pagodinho se aquele encontro não tivesse acontecido?
R. Eu seria bem sucedido em qualquer coisa que eu fizesse, porque tudo o que eu faço, eu faço com carinho. Eu estaria no jogo do bicho, sei lá, não sei. A gente não escolhe a vida, a vida escolhe a gente. Eu não escolhi ser Zeca Pagodinho, a vida me escolheu. No meu tempo, minha mãe não ia no samba para bater palma para mim, meu pai não ia, meus irmãos achavam que era vagabundagem... Hoje é diferente. O cara diz aí “eu quero ser artista”, ele vem aqui no estúdio, faz um disco, faz a foto, e vai procurar uma gravadora, ou vai na roda de samba a mostrar o CD dele e daqui a pouco o cara está por aí fazendo show. Não sei se isso foi bom, porque tem muito nego ruim, mas também tem muito nego bom.
P. Mas no samba sem padrinho é difícil ser alguém.
R. Tem que ter alguém para dizer: “esse cara é bom”. Por exemplo, uma palavra minha, da Beth, do Paulinho [da Viola] tem peso.
P. O que ele ou ela tem que ter para você sentir que é bom?
R. Nada. Tem que ter samba na veia, e na alma. A gente que é artista quando olha o artista sabe. Eu quando vi a Sandy pela primeira vez falei: “Essa garota é do palco, ela é a luz, ela já vem pronta”. Como outros artistas que eu conheço, que ganham na perseverança também, vai ali, investe teu dinheirinho, vende o carro... mas tem aquele que não quer porra nenhuma, mas gosta de fazer, que foi meu caso. Eu não queria fazer Chacrinha, não queria ir em televisão, pulava muros para ir embora, larguei a Angélica, a Xuxa, todos me esperando...
P. Você foi considerado um sucesso de vendas, como você vê a cultura da Internet? Como mede-se o sucesso quando não é mais necessário ir na loja para ter uma discografia?
R. [Zeca sai da sala e volta um minuto depois. Repito a pergunta] Deixa eu te falar, eu não sei de nada disso. Isso foi ruim para os compositores [Zeca dá um trago longo num cigarro e sai da sala de novo para falar com a recepcionista do prédio. Quer agradecer com um disco a indicação do dermatologista. Volta]. Quer ir lá no samba comigo? Sabe qual é o prato lá? Macarrão com carne assada.
P. Ótimo, não almocei. Mas, para não perder o fio da entrevista, por que você disse que as novas formas de consumir música são ruins para os compositores?
R. [Zeca pega os discos das recepcionistas para autografar. Pede para chamar uma funcionária que espera em outra sala] Bom, resumindo, minha maior qualidade como artista é que eu nunca fiz conta, não sei preço, não sei royalties, não sei o que é isso, nunca procurei saber. Não me interessa, não entra na minha cabeça. [Toca o telefone, ele responde] Vamos, lá?
[A assessora do artista completa a resposta depois: A internet ficou ruim para autores e intérpretes em função da sua baixa arrecadação de direitos autorais e pelo fato dela não abranger a criação inteira de um CD e sim faixas isoladas. Já a venda do CD, abrange a obra completa e sua venda beneficia tanto intérpretes como compositores].
P. Sim, mas precisamos terminar a entrevista.
R. Mas não acabou? [Zeca liga para sua mulher, Mônica]. “Manda uma bermuda e um chinelo para mim? Vou lá no aniversário, e põe no carro uma caixa de cerveja.”
P. No Brasil, um tempo atrás o pagode virou um termo até pejorativo, qual é motivo para isso?
R. Mas pagode é uma reunião, onde a gente come, canta, conversa...Mas a garotada criou um samba, de uma outra batida, com uma outra levada, com uma outra roupa, com o cabelo para o alto, com brinco, que saiu um pouco do sambista. Então o cara fala: “pô”.
P. Você gosta desse pagode?
R. Eu gosto do meu, da minha turma. Não desgosto, mas eu não escuto muito, não posso nem te dizer.
P. Você que já levou uma caixa de cerveja ao visitar o presidente Lula em 2003. Como você esta vendo todo este turbilhão político em que ele está envolvido?
R. Não me interessa. É muita mentira. Infelizmente isso já vem de muito tempo, então eu não tenho em que acreditar. Vai dizer que sou um alienado? Devo ser.
P. Na época do Mensalão você disse que via o Joaquim Barbosa como “o cara”. D iria hoje o mesmo de Sergio Moro?
R. Pois é, mas eu não acompanho essas coisas. A única coisa que me move para o mundo são as pessoas. Por exemplo, fui lá fora, no corredor, e tinha uma moça sentada ali. Eu fui perguntar se ela estava triste, se estava passando mal. Ela só estava descansando porque era o horário do almoço, mas não é legal isso? Eu vou lá embaixo, sento na lojinha, converso com o garçom... essa é minha vida. Não posso falar nada de ninguém porque hoje o cara é gente boa e amanhã está envolvido numa merda.
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