“Qualquer chileno é tão índio quanto Evo Morales”
Jornalista coordena a comunicação do Chile em relação à demanda da Bolívia de obter acesso ao mar
O jornalista Ascanio Cavallo, conhecido pesquisador da transição chilena, dirige desde outubro passado a equipe de comunicações do Chile em relação à demanda marítima boliviana, um dos conflitos bilaterais mais delicados da América Latina. Ele assumiu a função 20 dias depois da decisão da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que se declarou competente e negou a objeção preliminar chilena por 14 votos a dois. Desde então, Cavallo deixou de escrever sua coluna política dominical, suspendeu os comentários na rádio e seu trabalho na agência de comunicações Tironi e Associados, da qual é sócio-diretor. Hoje em dia, dedica-se integralmente a esta questão, que, nos últimos cinco meses, entrou em uma nova fase. Se até então a linha de atuação chilena estava centrada sobretudo no aspecto jurídico, seu lado político e de comunicação começaram a ganhar maior importância. A alguns dias das comemorações bolivianas do Dia do Mar, em 23 de março, Cavallo afirma que “o Chile tem interesse em desativar os elementos emocionais deste caso, embora seja difícil”.
Pergunta. Por que isso é tão complicado?
Resposta. Porque estamos diante de uma pessoa que sempre apela para o emocional, o presidente Evo Morales.
P. Quais conclusões o Chile tirou da derrota de Morales no referendo?
"Morales sempre tentou personalizar a demanda boliviana dizendo que sem ele a Bolívia não conseguirá chegar até o mar"
R. A reivindicação marítima, que foi usada como uma bandeira eleitoral, não funcionou. Morales sempre tentou personalizar a demanda boliviana dizendo que sem ele a Bolívia não conseguirá chegar até o mar. E essa era uma de suas principais armas também para esse referendo: é preciso prologar o mandato para obter sucesso na demanda. A população disse não.
P. Embora ainda faltem dois anos para uma sentença definitiva da Corte, não foi do agrado dos chilenos essa decisão tomada por Haia em outubro...
R. O que preocupa realmente o Chile é que essa decisão tenha sido apresentada na Bolívia como uma vitória. Encarar o desenvolvimento desses processos em termos de vitória ou derrota não é o caminho para se chegar a um acordo. O Chile não quer atuar dentro dessa lógica, o que não é fácil, porque sofre esse tipo de agressão quase cotidianamente.
P. É impossível uma negociação que implique soberania?
R. A Bolívia nunca disse com exatidão o que deseja do Chile. Nunca. Diz que quer uma saída soberana para o Pacífico, mas nem sequer definiu o que entende por soberania. A reivindicação boliviana é fluida: uma construção intelectual feita para evitar esses aspectos em que a Corte precisaria dizer que não. Dentro da Bolívia, entretanto, deixa de ser fluida. Evo Morales e seu Governo já disseram que a ação em Haia é o caminho pelo qual a Bolívia vai recuperar o acesso ao mar. Com uma ambiguidade máxima, que vai desde que poderiam ser recuperados os territórios perdidos na Guerra do Pacífico até que haverá praias e portos. Morales criou expectativas que não serão cumpridas de maneira alguma, acirrando os sentimentos nacionalistas. Isto é muito perigoso.
P. O que acontece no Chile?
R. A campanha boliviana teve um efeito muito dramático no Chile. As pesquisas de opinião alguns anos atrás mostravam uma simpatia pelo povo boliviano. E a campanha retórica deteriorou isso de forma impressionante, porque a opinião pública se endureceu. Atualmente, quase 90% dos chilenos acham que não se deve ceder nada, e um percentual muito alto acredita que nem sequer se deve conversar. Os chilenos estão se tornando fortemente antibolivianos, e acredito que os bolivianos se tornaram antichilenos também. Não podemos alimentar esse fogo.
P. Concorda que Morales conseguiu que a Bolívia tivesse uma certa presença no mapa mundial que antes não tinha?
R. Quem atraía simpatias era o próprio Evo Morales. Colocou a questão indígena em cena de forma muito bem feita, mesmo não sendo indígena. Ou, para dizer de outra forma: Morales não é mais indígena do que qualquer chileno, porque somos todos meio mestiços. Ele se aproveita do fato de o mundo conhecer pouco a América Latina. Tudo o que parece original tem bom apelo na mídia, é atraente. Isto permitiu seguir uma estratégia de vitimização, ao dizer que a Bolívia está em estado de subdesenvolvimento porque não tem saída para o mar. Isso é completamente falso. O subdesenvolvimento da Bolívia não se explica por não ter mar, mas por sua instabilidade institucional. Hoje a Bolívia ocupa o porto chileno de Arica em condições que nenhum outro país mediterrâneo tem.
P. Que condições?
R. Tem liberdade total de trânsito, não paga impostos, pode deixar seus produtos por meses sem pagar nada, diferentemente das próprias empresas chilenas. Pode ter agências aduaneiras, algo incomum em países que têm saída para o mar deste tipo. Cerca de 80% de suas exportações saem da cidade chilena de Arica e, além disso, 80% do porto de Arica é dedicado à Bolívia.
P. A Bolívia sempre atacou a legitimidade do Tratado de 1904.
R. Apesar da imagem que tem, a Bolívia entrou em guerra com todos os seus vizinhos. E perdeu territórios com todos. Quando, no início do século XX, o país tinha se reduzido à metade, começou a chegar a acordos para sair do buraco em que estava. E os próprios políticos bolivianos da época propuseram ao Chile o texto de 1904. Vinte e cinco anos depois de terminada a guerra, os bolivianos apresentaram o texto quase como “assine aqui”.
P. Neste texto, renunciava a seus territórios marítimos perpetuamente em troca de livre trânsito.
R. Mas não só isso. Consistia em compensações econômicas, obter vias de transporte como ferrovias e garantias de saída ao oceano. Importava muito mais para a Bolívia ter acesso ao Pacífico para exportar seus produtos do que ter litoral. Portanto, o Tratado de 1904 foi uma solução para o Governo boliviano naquele momento. Mas as gerações posteriores o rechaçaram.
P. O Chile se ressente dos apoios internacionais que a Bolívia conquistou agora?
R. Morales foi muito exagerado em relação aos supostos apoios internacionais. Em alguns casos, exageros que sabemos que são mentiras, como o suposto apoio do Irã, Turcomenistão e de Vladimir Putin. Ou o significado que deu às palavras gentis do presidente Hollande e da chanceler Merkel. Ele fez um uso publicitário disso que, de um lado, é difícil de contrapor e, de outro, o Chile não poderia copiar como estilo. Não posso pedir a minha presidenta que dia algo que não é verdade.
P. O Papa Francisco pediu diálogo entre os dois países.
R. É o mínimo, não? É muito difícil que alguém para quem se peça um gesto de apoio não solicite pelo menos que conversemos. Em todo o caso, suspeito que algumas das viagens que Morales fez no passado, depois do que ocorreu nos últimos meses, já não poderia fazer. Este é um tema bilateral que dispensa a intervenção de terceiros porque, quando isso acontece, tende a se envenenar mais.
P. No último quarto de século, os dois países estiveram perto de chegar a um acordo?
R. Sim, várias vezes, apesar de sempre sem cessão de soberania. Mas sempre se enveredou por razões internas. Todas as propostas do Chile fracassaram devido ao excesso boliviano. O Chile oferece algo e a Bolívia quer o triplo. Quis usar seu gás, seu petróleo, sua posição geográfica. Contra o Chile nunca foi capaz de entender que um acordo não pode ser construído à base de imposição ou chantagem.
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