Lula: palavrões que ferem e aproximam
Áudios de Lula acendem o debate sobre sua maneira de falar. Uns odeiam, outros não
A República brasileira está em chamas. A presidenta Dilma Rousseff chegou à beira do precipício político com um risco iminente de impeachment. Eduardo Cunha, presidente da Câmara de Deputados, pode ser exonerado do cargo se confirmado que embolsou 5 milhões de dólares desviados da Petrobras. Renan Calheiros, presidente do Senado, também é alvo de inquéritos na Operação Lava Jato e com isso pode cair. Mas somente Luiz Inácio Lula da Silva é Nero no Brasil, como ele mesmo disse em uma de suas ligações interceptadas pela Polícia Federal: “Sou a única pessoa que poderia incendiar este país”, declarou por telefone o ex-presidente a Vagner Freitas, presidente da CUT e seu amigo, citando o imperador que queimou Roma.
Na verdade, ele já incendiou, nos dois sentidos do termo: para bem ou para mal. Isso se comprova na reação aos grampos vazados na semana passada, que muitos gastaram horas escutando – seja para revolver acontecimentos ditos “republicanos” ou apenas para ridicularizar (a depender do ponto de vista) a oralidade do metalúrgico. Não é preciso entrar nos méritos ou desméritos jurídicos e nem políticos para analisar sua controversa maneira de falar. A questão aqui é como ele gasta seu português.
É chamativa a quantidade de palavrões ditos pelo ex-presidente. “Caralho”, “merda”, “vai tomar no cu” e tantos outros impropérios que liberam aquela dose cabal de energia na conversa, e passeiam de uma frase para outra, quase como se fossem pontuação. Tem quem ache que isso é um absurdo, sobretudo na boca de um líder político. Mas, e na intimidade de um telefonema... Espera-se o mesmo de qualquer mortal? Não para quem vê o descarrego dessa raiva cotidiana, prosaica como um cocô de cachorro que se pisa pelo caminho, e se sente representado. Afinal, nem sempre (quase nunca?) um político de grande porte é capaz de transmitir que tem sangue nas veias, que palita os dentes ao invés de usar fio dental, que não leu Proust nem James Joyce e inclusive que está desesperado.
Não precisa ir longe: basta pensar em Dilma, tão parecida, porém tão diferente. Quando o Brasil sediou a Copa do Mundo, em 2014, palavrões contra a presidenta encheram estádios, principalmente na abertura e no encerramento do evento. Muitos dos que mandaram a mandatária “tomar no cu”, naquele momento de visibilidade geral da nação, hoje se incomodam com os termos chulos de Lula, mesmo que ditos em privado. Ao ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, por exemplo, ele explodiu: “Porque era preciso você chamar o responsável e falar: que porra que é essa?”, disse ele sobre investigação da Receita Federal sobre o Instituto Lula. Fato é que muitos dos que escutam não encontram empatia possível em seu praguejar, mostrando que a ojeriza em relação a ele já é massiva.
“Fala, querida”
A coloquialidade de Lula, que soube por décadas ser um líder fluente e carismático, não se resume a palavrão. Ele sabe ser doce e usa insistentemente a palavra “querido”. Conversa com a presidenta e se dirige a ela – e à sua conhecida secura – com um “fala, querida”. Há quem diga que a bronca de Lula com a presidenta não é por causa de sua política econômica, mas porque ela desliga o telefone com ele sem mandar beijo.
Mesmo abatido pelo desgaste da condução coercitiva, ele soube responder com carinho ao gesto de "solidariedade" do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, que também participa das conversas interceptadas.
Lula: Alô!Paes: Meu amigo!Lula: Querido prefeito, tudo bem?Paes: 'Cê' não precisa de solidariedade, mas tô ligando pra te dar um abraço. Dizer que 'tô' contigo nesse absurdo aí que fizeram com o senhor na sexta-feira. É um escândalo. É uma vergonha.Lula: Obrigado, querido.
Objeto de teses mundo afora sobre seu talento para discursar às multidões, Lula fala a língua do povo, só que melhor do que a maioria – e do que Eduardo Paes, que teve de pedir desculpas públicas por ter ofendido mais adiante nessa conversa o município fluminense de Maricá. “O senhor é uma alma de pobre. Eu, todo mundo que fala aqui no meio, falo o seguinte: imagina se fosse aqui no Rio esse sítio dele, não é em Petrópolis, não é em Itaipava. É como se fosse em Maricá. É uma merda de lugar, porra!”, afirmou.
Lula tem mesmo alma de pobre, que é como nasceu, fato que em si não é um demérito. Sua fala não ressalta pela falta de plural, mas pela escolha das palavras e pela mescla de doçura e ira que ninguém decifra – e que, assim como encanta, tornou-se incandescente aos ouvidos de quem o detesta. Como bem mostram os grampos, o homem que veio de baixo é chamado até hoje de “presidente” por seus colaboradores. Ao mesmo tempo, seu caminho continua marcado pelas diferenças resumidas a uma frase que teria sido dita por alguém da oposição à época das eleições contra Fernando Henrique Cardoso, em 1994: “Agora vão ter de escolher entre um sociólogo e um torneiro mecânico”.
Enfim, nada nessa mistura de metalúrgico com chefe de Estado, eternizada no imaginário brasileiro, faz pleno sentido – da sua típica rouquidão ao seu estilo de fazer alianças, passando pelo cecear de sua língua brigando com os dentes a cada som de s ou z. Na carta que escreveu para se defender dos telefonemas vazados e pedir “justiça”, ele acrescenta a essa imagem a saga de “ignorante” que o acompanha desde a primeira eleição presidencial que disputou (e perdeu) em 1989: “Não tive acesso a grandes estudos formais, como sabem os brasileiros. Não sou doutor, letrado, jurisconsulto”. “Mas sei”, afirma sem maiores explicações, “distinguir o certo do errado”. Será, para sempre, o que seus inimigos odeiam nele e também o que seus muitos fãs admiram.
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