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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Pontas soltas

O mosquito 'Aedes' é consequência da urbanização sem planejamento e qualidade que assola o país desde o início dos anos 80

Angelica Pereira e a a filha Luiza, que tem microcefalia, em Santa Cruz do Capibaribe (Pernambuco).
Angelica Pereira e a a filha Luiza, que tem microcefalia, em Santa Cruz do Capibaribe (Pernambuco).Felipe Dana (AP)

Poucas evidências científicas e estatísticas estão consolidadas sobre o zika vírus, infelizmente. Situação inversamente proporcional à emergência. FioCruz, Ministério da Saúde, OMS têm provido informes públicos, mas a única certeza que fica é a necessidade urgente de combate ao mosquito Aedes, vetor de moléstias tropicais, já configuradas em epidemia continental.

O grifo ao termo tropical tem por objetivo destacar uma percepção unidimensional sobre o assunto, que necessita ser mais bem compreendida e diagnosticada, definindo ações entre sociedade e Governo: o mosquito Aedes é consequência da urbanização sem planejamento e qualidade que assola o país desde o início dos anos 80, ao qual corresponde o último grande ciclo de inchaço urbano e, portanto, sua erradicação está vinculada a medidas sanitárias, mas também ao estabelecimento de práticas que venham a combater a ineficiência urbana, áreas ociosas, degradação territorial, e promover infraestruturas essenciais como o saneamento básico.

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Tal vetor é também estimulado pelas mudanças climáticas, como o aumento de ilhas de calor nas cidades, onde o ciclo de vida do mosquito é potencializado pela baixa permeabilidade do solo urbano, pelo desastre da qualidade do desenho urbano (calçadas desprovidas de conservação, sarjetas obstruídas, má conformação de vias e drenagens), por extensos territórios informais e por espaços intersticiais cuja condição física é um conjunto impreciso entre urbanização não implementada e natureza não restituída - um assemblage proto-urbano, que identifica as cidades brasileiras hoje, vítimas de governança inepta, planejamento e projetos inconclusos, enubladas por um urbanismo sócio-analítico e platônico.

Mudar esta condição levará tempo e quem estará disponível a se comprometer? O campo político que defendeu historicamente as reformas urbanas é hoje comprometido com abandono de planejamento, de projeto, com flexibilização da lei de licitações, com permissão para empreiteiras poderem desapropriar e até anistia a quem assumir culpa em processos de corrupção. Ou seja, para o esfacelamento territorial corresponde o desmonte das instituições que promovem e conservam o solo urbano.

O chão das cidades é o corpo material da nação, que está febril, liderado por autoridades urbanas com microcefalia.

Sejamos francos: quem de nós estará também disponível a comprometer-se com tempo na era da informação, das respostas imediatas via celular, das redes sociais e suas morais efêmeras? Que participação queremos ter em processos que levarão uma geração se temos memória que dura uma semana e se nem a imprensa consegue mais reter reflexões?

O chão das cidades é o corpo material da nação, que está febril, liderado por autoridades urbanas com microcefalia

A conjuntura filosófica atual é mais favorável ao mosquito, tal qual partícula irracional a incomodar o coletivo digital das cidades brasileiras e sua materialidade precária. Um verdadeiro bug do nosso tropicalismo.

Tempo é portanto dimensão crítica para o combate ao vetor-mosquito havendo outro componente que torna seu sucesso garantido em nossas paragens: o verão, período de maior ocorrência estatística das moléstias, é marcado no Brasil por sequência de festividades culturais que impactam a vida doméstica e capturam toda atenção da população.

De 21 de dezembro a 20 de março, nossos verões são marcados por Natal, Ano Novo, Carnaval e, logo depois, pela Páscoa. País tropical, católico, libidinoso, festivo, alegre, conservador e moralista, o Brasil é riquíssimo culturalmente, capaz é a nação inteira de celebrar memórias, identidades, raízes, tradições com força, vigor, inovação e leveza, indo da celebração religiosa ao paganismo mais mundano.

A beleza dessa cultura é entretanto pouco articulada como elemento motriz de transformação. São manifestações potentes porém raramente estrategicamente mobilizadas. São alicerce econômico, geram diretamente empregos, cidadania, inclusão, indiretamente tem altíssimo potencial turístico, poderiam também ajudar a combater o mosquito e até a repensar o território. Mas o que se observa é o depenamento orientado das políticas culturais e seu Orçamento.

Poderíamos converter o período do verão, e sua força cultural e coletiva, em um período especial de união nacional de combate ao mosquito Aedes? Claro que sim.

Entretanto, tal proposta não virá da população. Precisa vir dos Governos, mas estes são cegos ao potencial mobilizador da cultura.

Será que do mesmo modo não poderíamos reorientar políticas territoriais colocando em evidência valores culturais? Assim como as igrejas marcavam as paisagens da formação do país no período colonial porque não converter escolas de samba em epicentros de urbanização, de pactuação de valores espaciais novos, tradicionais porém inovadores? E se a tão necessária infraestrutura das áreas informais das nossas periferias urbanas fossem hierarquicamente organizadas na centralidade destes lugares de memória e reafirmação anual de beleza, como um Prometeu feliz?

Poderia haver também um enredo urbano a partir das escolas de samba? E a partir daí melhor desenho urbano, espaço públicos, mais participação, melhores territórios e o fim definitivo do mosquito?

Nas pontas soltas das cidades brasileiras existentes mora uma canção sobre lugares melhores, alegres e saudáveis.

Washington Fajardo é arquiteto e urbanista, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural.

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