O futebol fantasma
Há mistérios belíssimos que não nos deixam descansar, como o gol da Inglaterra em 66

No futebol às vezes acontecem lances inexistentes, que não podem ser abarcados por uma explicação. É como se não tivessem acontecido por completo, como o gol no qual Maradona se livrou de seis adversários (na Copa de 1986), ou a defesa de Gordon Banks na cabeçada de Pelé (no Mundial de 1970), que dizia que foi gol, mas o goleiro inglês segurou. São mistérios nunca revelados. Magia. Não há resposta. Nunca haverá resposta alguma. Nunca houve resposta alguma. “Eis aí a resposta”, dizia Gertrude Stein. O futebol sobrevive porque em cada partida eclode um episódio imprevisto, inclusive vários, e tudo muda. Pode ser um drible atravessando uma parede de tijolos, ou uma jogada coral, para piano, com partitura de Bach, ou a pura velocidade de uma troca de passes, competindo com a luz.
Essa vertente fascinante, na qual durante alguns instantes o jogo desobedece, se descontrola e navega sem rumo na incerteza, é que enche os estádios, enquanto enlouquece o técnico, que nessa noite, ao apagar o abajur, não deixa de se perguntar: “Como foi que isso aconteceu?”. As pessoas vão ao estádio, porém, em parte porque gostam de não saber o que vai acontecer. Esse nervosismo terrível e agradável representa o segredo do futebol.
Há mistérios nesse esporte que os treinadores acreditam estar prestes a revelar, mas que no último instante são velados como um filme fotográfico. “Você elabora uma tática para um dia”, dizia Menotti, “mas aí aparece algo inesperado, e a tática vai à merda”. Essa proximidade com o segredo final, impossível de alcançar, faz lembrar um conto de Roald Dahl no qual uma mulher assassina o seu marido com um pernil de cordeiro congelado. Atinge-o com grande precisão e beleza na cabeça, e o mata. Pimba. Magia. Depois cozinha o cordeiro e convida os dois policiais que investigam o caso para almoçar. Os agentes, abatidos após procurarem sem sucesso a arma do crime, a comem sem perceber. Não poderiam estar mais próximos, e ao mesmo tempo tão distantes.
Entre as coisas que alguns dias acontecem num estádio, e cuja existência se questiona, está também o gol sobre a linha. Foi gol? Não foi? A tecnologia que a FIFA pretende adotar para resolver a dúvida em tempo real, acabando com o chamado gol fantasma, empurra para um debate que já foi resolvido em outros esportes a favor da tecnologia. Confesso que não sei a minha opinião, mas gostaria de saber. Só sei que, quando as coisas começam a ficar claras demais, começam também a perder a emoção. São vividas sem nervosismo. Todos nós queremos por natureza saber, mas precisamos saber tudo? Há mistérios belíssimos, que nunca nos deixam descansar, e sobre os quais passam os anos e continuamos falando, como o gol fantasma da Inglaterra na Copa de 1966. Por outro lado, penso na dor que levamos no coração, gravado por toda a vida, quando concedem ao adversário um gol que não foi, e então choro.