“Não existe nenhuma garantia de que a desigualdade vai continuar caindo”
Para a professora da USP, fatores inéditos nesta crise podem amortecer o impacto social
Para a professora de ciência política da USP, Marta Arretche, não é possível ainda avaliar se a crise econômica atual, que provocou cortes no Orçamento brasileiro, colocará um freio na queda da desigualdade que o país vivencia desde a redemocratização.
Organizadora do livro "Trajetórias das desigualdades - como o Brasil mudou nos últimos anos", publicado pela editora Unesp em parceria com o Centro de Estudos da Metrópole (CEM), do qual é diretora, Arretche afirma que "a queda das desigualdades não foi resultado de nenhum fator isolado, mas da combinação no tempo de efeito de diferentes políticas orientadas a públicos distintos" e que, nesta recessão atual, existem fatores inéditos que podem funcionar como um "colchão".
Pergunta. No livro você fala sobre o aumento da desigualdade regional no país, como isso se deu?
Resposta. Nas décadas de 70 e 80, o crescimento econômico aumentou as desigualdades entre as regiões. Criou o que veio a ser caracterizado como um divisor entre o Norte e Nordeste, que têm a maior concentração de pobres e menores níveis de riqueza econômica, e o Sul, Centro-Oeste e Sudeste, que são regiões com maiores níveis de riqueza e menor concentração de pobres.
No fim da década de 2000, essa desigualdade de riqueza [entre as regiões] tendeu a ser um pouco atenuada por efeito da elevação do salário mínimo e dos programas de combate à extrema pobreza.
Agora, outra dimensão importante nesse processo é que a desigualdade de acesso aos serviços entre as regiões diminuiu bastante na década de 2000. Ela foi praticamente eliminada no que diz respeito à energia elétrica e reduziu bastante no que diz respeito à água. Em relação à oferta de esgoto, essa política é muito paralisada no país, então a desigualdade regional permanece.
P. Por que o acesso aos serviços é importante para a redução da desigualdade?
R. Um dos componentes centrais do bem-estar dos indivíduos é ter acesso a serviços básicos. Lamentavelmente, o país na década de 80, e em particular no início do processo de redemocratização, tinha indicadores sociais muito ruins. Os índices de cobertura de serviços de saúde, educação, saneamento básico, água, energia elétrica, eram piores do que nos outros países da América Latina menos ricos do que o Brasil em termos de PIB per capta e renda per capta. Isso significa que a tarefa para as gerações que governaram o país sob o regime democrático era muito grande porque era um país caracterizado não apenas por uma intensa desigualdade entre indivíduos, mas também por uma elevada desigualdade entre regiões e por uma superposição de vantagens entre indivíduos. Em 1980, 80% dos 5% mais pobres não tinham nenhum desses serviços. Nós chamamos de superposição de vantagens, ou seja, aquele que tem melhor renda, também tem a melhor escolaridade, melhor acesso a serviços e, portanto, tem uma cesta de condições de vida bastante completa do ponto de vista das condições básicas de existência. Ao passo que os indivíduos nos estratos inferiores de renda também não tinham acesso a água, esgoto, energia. Eles tinham uma superexposição de desvantagens. O que aconteceu no processo de democratização brasileiro, que é parte do problema que estamos vivendo hoje, é um progressivo processo de inclusão dos muito pobres a esses serviços muito essenciais e muito básicos.
P. E por que isso é parte do problema vivido hoje?
R. Porque isso tem um custo. Os 20% mais pobres têm uma renda muito baixa e grande parte do que eles recebem tem que ser subsidiado por diversos mecanismos, seja pelo tesouro, seja por tarifas cruzadas nas diferentes políticas... Isso tem um custo fiscal. Nada disso sai de graça, é financiado. E a população com incapacidade de pagamentos de serviços básicos é muito numerosa no Brasil, o que é outra forma de dizer que a concentração da renda é muito alta. Alguém tem que pagar por isso. Se não é possível aumentar impostos, porque há revoltas sistemáticas contra a taxação no Brasil, o resultado é um déficit fiscal. Se você aumenta o acesso a serviços para os muitos pobres, e os muito pobres são um contingente expressivo da população, e não é possível aumentar impostos porque há uma barreira para isso e as outras soluções possíveis, que seriam o endividamento, a inflação ou os recursos do petróleo, estão fechadas, o déficit fiscal será uma consequência.
P. É incorreto dizer, então, que o PT só ganha no Nordeste por conta do Bolsa Família, já que a melhora do acesso a serviços teve um impacto significativo?
R. As pesquisas sobre o comportamento do eleitorado em relação ao Lula e ao PT dizem que o primeiro mandato do presidente Lula representou um realinhamento do eleitorado por conta do escândalo do Mensalão e das políticas dirigidas ao Nordeste. Primeiro, é preciso ressaltar que qualquer política no Brasil que se dirija aos mais vulneráveis vai beneficiar mais do que proporcionalmente o Nordeste porque no Nordeste há concentração de pobres. Os estudos sobre o comportamento eleitoral dizem que o comportamento do eleitor da região é explicado pelo Bolsa Família. Eu acho que isso é mais resultado das pesquisas que foram feitas. Esses estudos omitem o impacto de outras políticas, como a expansão da energia elétrica, da água, dos serviços educacionais e de saúde.
P. Pesquisadores têm dito que a desigualdade no país parou de crescer e agora está andando de lado. O que podemos esperar a partir de agora, com o ajuste fiscal? É possível prever um aumento da desigualdade nos próximos anos?
R. É difícil saber. Já temos dados dizendo que o desemprego aumentou e que a média dos salários teve um ligeiro declínio. Mas ainda é cedo para saber o tamanho e o impacto disso porque há dois outros componentes novos agora, que não tivemos em períodos de recessão anteriores, que são: a transição demográfica e a elevação dos níveis de escolaridade no Brasil. Nas recessões anteriores, e me refiro em particular à década de 80 no Brasil, nós contávamos com um componente que era uma oferta abundante de mão de obra de escolaridade baixa. O tamanho dessa oferta diminuiu por razões demográficas [as mulheres mais pobres estão tendo menos filhos] e pelo aumento dos níveis de escolaridade. Então nós não sabemos até que ponto esses dois fatores vão operar como um colchão da queda da desigualdade.
P. Isso porque a renda desses trabalhos não deve diminuir?
R. Se a oferta desses trabalhadores for mais reduzida, o seu poder de barganha no mercado de trabalho aumenta. O modelo de industrialização que tivemos historicamente no Brasil é de baixo componente tecnológico, que operava porque havia um exército de pessoas no mercado de trabalho dispostas a trabalhar por um baixo preço. Esse contingente, componente estrutural do mercado de trabalho no Brasil, foi muito alterado pelas razões demográficas.
Outra coisa a se analisar neste cenário é que duas políticas importantes de combate à pobreza no Brasil não foram desativadas: o Bolsa Família e a indexação do salário mínimo. São duas políticas que também podem operar como um colchão na queda da desigualdade e da pobreza. Embora a recessão seja um fator importante, algo que precise ser observado porque atua no mercado de trabalho, ela não é um único componente do comportamento da desigualdade no Brasil. Ela é importante, mas não é o único. A equação para analisar o impacto da recessão supõe analisar também o impacto do Bolsa Família, do salário mínimo, da escolaridade, da demografia, que também são componentes importantes dessa equação.
P. Qual o impacto que um corte do Bolsa Família pode ter hoje, como sugeriu o deputado Ricardo Barros, relator do projeto do Orçamento de 2016 na Câmara?
R. O Bolsa Família beneficia os trabalhadores mais vulneráveis do mercado de trabalho. Aqueles menos escolarizados que em uma situação de crise econômica são os primeiros a terem sua ocupação reduzida. Mas eu acho muito improvável que um programa como o Bolsa Família seja cortado. Ele beneficia 14 milhões de domicílios, o que representa um contingente eleitoral importante. Há grande incerteza com relação às eleições do ano que vem, então acho muito improvável que neste contexto uma expressiva maioria dos parlamentares vote uma medida que seja tão impopular porque ela afeta um contingente expressivo do eleitorado. E vale ressaltar que isso não tem nada de clientelismo. Tem a ver com o fato de que eleitores votam em políticas que melhoram seu bem-estar. Um eleitor que vota no Bolsa Família porque depende dele está fazendo o mesmo cálculo que um eleitor que vota por isenção fiscal, que vota por redução dos tributos. Todos estão olhando para sua renda futura e votando em políticas que o afetam. O eleitor vota em parlamentares que penalizam ou melhoram a sua renda no momento presente ou no futuro imediato.
P. É possível garantir que o país vai continuar a seguir o caminho de redução da desigualdade?
R. Isso nós não sabemos. A trajetória da Europa e dos Estados Unidos mostra a partir da década de 70 a desigualdade e a pobreza crescendo muito, sob democracias muito sólidas, muito consolidadas, que não estão ameaçadas. Então, não existe nenhuma garantia anterior de que a desigualdade vai continuar caindo. Nós tivemos no Brasil 20, 25 anos de trajetória virtuosa de queda da desigualdade. Como os nossos patamares de desigualdade eram muito altos, políticas até muito baratas, como o Bolsa Família e a política de valorização do salário mínimo, que tem um impacto fiscal importante, mas ainda baixo, tiveram muito impacto sobre a desigualdade. Mas não tem nenhuma garantia de que isso vai continuar assim, isso vai depender de nós termos, de um lado, o continuado debate sobre a imoralidade da desigualdade e da pobreza que ainda persiste no Brasil e, de outro, de partidos políticos e parlamentares que vocalizem e representem esses interesses no Parlamento. Mas não tem nenhuma garantia de que isso vai acontecer. Nós não sabemos o que vai acontecer nas eleições do ano que vem. Há muita incerteza no ambiente político brasileiro hoje.
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