Um em cada dez presos no corredor da morte dos EUA é veterano de guerra
Primeiro executado em 2015 foi um veterano do Vietnã, com transtorno pós-traumático Estados Unidos celebram o Dia do Veterano nesta quinta-feira
Que a pena de morte é arbitrária e discriminatória é algo provado pelos números ano após ano, desde que a Corte Suprema a reinstaurou no sistema penal dos Estados Unidos, em 1976. E debruçar-se sobre ela significa também enfrentar uma das realidades mais sinistras do cotidiano norte-americano, como fica claro no último relatório do Centro de Informação sobre a Pena de morte (DPIC, na sigla em inglês).
Coincidindo com o Dia dos Veteranos, celebrado nesta quinta-feira nos EUA, Richard Dieter, que foi diretor do centro entre 1992 e 2015, conclui num estudo que 10% dos condenados (um em cada dez presos no corredor da morte) são ex-militares que esperam para ser executados pelo mesmo Governo ao qual serviram. Em quase todos os casos, de nada valeram os pedidos de clemência. Esses homens foram considerados “o pior do pior” e, por isso, não merecem viver, na avaliação da Justiça norte-americana.
Trata-se de 300 pessoas cujas feridas no campo de batalha condicionaram sua reincorporação à sociedade, mas que depois não foram suficientemente ressaltadas – ou foram até mesmo ignoradas – durante os julgamentos que receberam pelos crimes cometidos. São homens que sofrem do chamado transtorno do estresse pós-traumático (TEPT). Mais de 800.000 veteranos do Vietnã passaram por isso. Quase 175.000 combatentes na Operação Tempestade do Deserto foram vítimas da chamada doença da Guerra do Golfo, que está ligada ao câncer de cérebro e diversos transtornos mentais. Mais de 300.000 soldados retornados das guerras do Iraque e Afeganistão têm TEPT. Segundo vários estudos, apenas metade deles teria recebido tratamento no ano passado.
Um percentual muito elevado dos veteranos que estiveram em combate leva para seus lares o trauma de guerra. Sem diagnóstico nem tratamento, esses veteranos acabam se automedicando com substâncias aditivas, como o álcool ou as drogas ilícitas, o que os faz cair em uma espiral de autodestruição que se torna violenta para eles mesmos e para quem os cerca. Segundo um estudo citado pelo jornal The New York Times, um terço das vítimas assassinadas por veteranos do Iraque e Afeganistão tinha relacionamentos afetivos com os autores do crime ou com seus familiares.
Se 300 veteranos de guerra estão hoje no corredor da morte, muitos outros foram executados no passado. “Em um momento no qual é cada vez menos frequente a condenação à máxima pena, é muito alarmante que tantos veteranos que sofreram graves danos mentais e emocionais enquanto serviam ao seu país estejam agora à espera da execução”, afirma Robert Dunham, diretor do DPIC.
O uso da pena de morte nos Estados Unidos decresceu substancialmente nos últimos 15 anos. As condenações à morte em Estados que lideravam o sinistro ranking, como Texas e Virgínia, caíram 80%. Em 2015, as execuções voltarão a diminuir, refletindo a boa tendência vista em 2014, quando o índice de execuções foi o menor em duas décadas.
Andrew Brannan
A primeira pessoa executada neste ano foi Andrew Brannan, depois de que a Suprema Corte da Califórnia ratificou sua sentença. Brannan era um veterano do Vietnã que sofreu abusos quando criança. Foi executado na Geórgia apesar de ter recebido um diagnóstico de TEPT e de outras formas de doença mental.
O homicídio cometido por Brannan foi gravado em um vídeo da polícia que mostra o estado mental em que se encontrava. Em 12 de janeiro de 1998, Brannan foi interceptado por um policial por dirigir sua caminhonete em velocidade excessiva. No vídeo, se vê que Brannan desce do veículo e começa a agir de forma errática. Na maioria das jurisdições do EUA, é proibido sair do veículo quando um policial manda o motorista parar.
“Vão se foder! Sou veterano da Guerra do Vietnã!”, grita Brannan, desafiador, ao agente que o abordou, enquanto se nega a seguir as ordens dos policiais. Então, o ex-combatente entra de novo na caminhonete, pega uma arma e começa a disparar. O agente Kyle Dinkheller reage, mas é atingido por nove tiros antes de cair morto. Brannan levou um tiro no abdômen. Ainda hoje, essas imagens continuam sendo mostradas nas salas de aula das academias de polícia.
John Allen Mohamed
Conhecido como o franco-atirador de Washington, esse veterano da Guerra do Golfo foi condenado à morte pelo assassinato de 10 pessoas escolhidas aleatoriamente, a maioria delas na região da capital do país. Mohamed foi executado em 2009.
A ex-mulher de Mohamed descreveu, durante o julgamento, a maneira como o marido foi se tornando uma pessoa diferente depois de retornar da frente de combate, onde chegou a ser condecorado. "Antes de ir para o Golfo, ele era a alegria das festas. Quando voltou, era um homem confuso, com variações de humor. Foi diagnosticado com TEPT, mas era orgulhoso demais para pedir ajuda”, comenta Mildred Mohamed.
Eddie Ray Routh
O caso desse marine fornece um exemplo de que é possível a adoção de um ponto de vista diferente na hora de definir sentenças tão duras e irreversíveis como a pena de morte. Routh é o soldado que matou Chris Kyle, ex-militar das forças especiais da Marinha e o franco-atirador mais letal da história dos Estados Unidos – uma figura que se tornou conhecida a partir do filme Sniper Americano, de Clint Eastwood.
Kyle passou por vários problemas na hora de se reintegrar à vida social depois de retornar da frente de combate. Por causa disso, dedicava parte de seu tempo a ajudar soldados que haviam voltado dos campos de batalha e passavam pela mesma coisa que ele havia enfrentado. Um desses ex-combatentes foi Routh, que tinha problemas mentais e acabou matando Kyle quando os dois, certa tarde, praticavam tiro em Odessa, no Texas. Routh foi condenado em fevereiro deste ano a passar o resto de sua vida na prisão, mas não no corredor da morte.
John Cunningham
Em julho deste ano, a Corte Suprema da Califórnia manteve, por unanimidade, a condenação à morte de John Cunningham, também veterano do Vietnã, e também vítima de abusos quando criança. Cunningham foi condenado pela morte de três pessoas em um lugar onde havia trabalhado antes. O ex-combatente confessou o crime e se disse aliviado por ter sido pego, fazendo muitas referências a pesadelos e experiências vividas no Vietnã. Durante o julgamento, ele não se defendeu. No processo, a defesa apresentou várias provas atestando o seu estado mental precário, mas a acusação contra-atacou afirmando que outros veteranos passaram pela mesma situação sem, no entanto, cometer crime algum. Cunningham aguarda que o Estado da Califórnia defina a data de sua morte.
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