_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

As palavras ferem

Mary Beard se tornou uma lutadora contra um sistema frente ao qual nos sentimos desarmadas

Elvira Lindo
A professora e apresentadora de televisão Mary Beard.
A professora e apresentadora de televisão Mary Beard.CORDON PRESS

O caso de Mary Beard é paradigmático. Eu o acompanhei há um ano, quando vários veículos, como The New Yorker, The Guardian e BBC, repercutiram uma conferência que essa prestigiosa pesquisadora do mundo clássico – professora de Cambridge, colaboradora doTimes Literary Suplement e infatigável divulgadora da vida na Roma Antiga – proferiu no Museu Britânico. Tinha como título Oh, Do Shut Up, Dear (Ah, vê se cala a boca, queridinha), e nela a autora fazia um prolixo percurso mostrando como ao longo da história os homens tentaram calar a voz das mulheres.

A pesquisadora do mundo clássico Mary Beard.
A pesquisadora do mundo clássico Mary Beard.CORDON PRESS

Da Odisseia à sua própria experiência, já que Mary Beard, uma senhora de 60 anos que passou quase a vida inteira estudando detalhes surpreendentes sobre as sociedades antigas, repentinamente se tornou uma celebridade televisiva graças ao programa de divulgação científica Meet the Romans, que lhe ensinou com sangue como a nossa natureza não é menos agressiva hoje do que naqueles velhos impérios que hoje consideramos tão cruéis. Seu programa provocou uma enxurrada insuportável de críticas. O extraordinário é que essas críticas não se referiam ao conteúdo em si, e sim ao aspecto físico dela. Nossa professora tem um ar não diferente do de muitas eruditas entregues desde a tenra juventude aos assuntos intelectuais: ostenta amalucadas melenas brancas, seus dentes chamam a atenção por sua irregularidade, permite-se detalhes excêntricos nos sapatos e óculos e, o que pareceu mais revoltante para alguns, mostra um impactante aprumo em sua linguagem corporal. Não está nem aí para ser bonita, mas o mesmo não vale para alguns críticos televisivos que, ignorando os ensinamentos que ela generosamente pretende difundir, se dedicaram desde o começo a descrever a vestimenta pouco cool da sábia senhora. Mais cruel ainda foi a matilha do Twitter, onde abundaram comentários sobre a sua suposta feiura.

“Puta fedorenta. Com certeza a sua vagina dá nojo.” Esse foi um dos interessantes tuítes que a senhora Beard reuniu. O curioso é que, fazendo pouco caso dessa lei não escrita que aconselha às personalidades públicas não olhar o que se diz delas nas redes, essa mulher – que havia se educado no feminismo ativo dos anos setenta – arregaçou as mangas e decidiu encarar seus detratores. Alguém a ajudou a localizar o autor da ferina mensagem: era um estudante, tinha 20 aninhos. Beard ligou para a mãe dele e conversou com ela. Também falou com o autor de um site que publicou uma foto da pesquisadora com uma vagina superposta em sua cara. Conversou com eles e com outros tantos e publicou em seu blog o relato desses diálogos que, finalmente, formaram a interessantíssima palestra que ela leu no Museu Britânico, sobre o silêncio imposto às mulheres quando tentam frequentar territórios tradicionalmente masculinos.

Mais informações
Cadeia para os ‘trolls’?
Prisão para dois tuiteiros britânicos por assediar verbalmente duas mulheres
'Ódio na Rede'
Monica Lewinsky fala contra a cultura da humilhação na Internet
O que meu namorado aprendeu ao ser tratado como mulher na web

De repente, esta mulher hiperativa, brilhante e veemente virou uma lutadora contra um sistema perante o qual as demais nos sentimos desarmadas. O dia em que uma eminência de Cambridge telefonou para o estudante que a chamou de puta e falou com ele e com a mãe dele é para mim tão histórico quanto essas piadas de romanos, ao estilo Monty Python, sobre os quais a historiadora escreveu um ou outro ensaio suculento. O agressivo tuiteiro se desculpou com sinceridade. Sua grosseria se voltou contra ele porque, como Beard a tornou pública, o inesquecível insulto aparece quando se faz uma busca com o nome do estudante no Google. Uma mancha no currículo. Ela, sempre surpreendente, exigiu o perdão para quem, mesmo ofendendo-a tão cruamente, demonstrou arrependimento: essas palavras, por mais intoleráveis que sejam, não podem arruinar uma vida.

Beard se tornou uma figura emblemática para muitas mulheres. A jovem poeta Megan Beech escreveu um poema, When I Grow Up I Want to Be Mary B (Quando eu crescer quero ser Mary B.), que vocês podem encontrar recitado por sua autora no YouTube. E eis que, quando algumas acreditavam que o feminismo ativo estava morto, descobrimos que há muitos motivos para ressuscitá-lo.

Mary B. se olhou ao espelho e fez a lista de todos aqueles insultos que estava recebendo: “Feia, gorda, velha, puta, fedida, desagradável, mal vestida, mal comida, sapatão…”. Doem, não é? Daria para escrever um ensaio sobre as mil maneiras de ofender uma mulher. Mas uma vez que a nossa heroína confrontou a dureza dos insultos, começou a relacioná-los com uma tradição que vem de longe: o problema não é o que uma mulher diga, mas sim que ela fale. E então decidiu pesquisar sobre a natureza de quem insulta. O que pensaria você do seu marido, do seu filho, do seu irmão ou do seu melhor amigo se ficasse sabendo que ele é o autor de tão repugnante prosa? Eu me sentiria desanimada. E passaria a lhe contar o que não aprendeu quando criança: que as palavras ferem.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_