“Casal perfeito”, famoso ou anônimo, é lenda
O casal perfeito é uma ficção, no cinema ou na publicidade de salsicha. Casal bom é o casal bagaceiro, meio torto, “guache na vida”, errante e passional no romantismo
O “casal perfeito” é apenas uma definição perversa para ampliar o futuro escândalo conjugal na praça.
Quando o casal perfeito do prédio ou do bairro se separa, o cruel vizinho saliva de felicidade, a baba de veneno e sarcasmo chega a escorrer no canto da boca. Alguns amigos da onça soltam fogos, os rojões da vingança riscam os céus do subúrbio, é uma festa, um zunzunzum na repartição ou na firma. Quem mais comemora nesse momento, pode prestar atenção, é aquele marido canalha, sujeito nada virtuoso, cansado de ouvir a própria esposa fazer o samba-exaltação sobre as qualidades do homem exemplar que morava ao lado: “Está vendo, mulher, a casa do maridinho certinho caiu, desmoronou”, diz.
O casal perfeito é uma lenda urbana. Seja na Belém da dupla pop Joelma e Chimbinha, na Los Angeles/Nova York de Tom Brady e Gisele Bündchen... Seja na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Na riqueza ou na pobreza, na saúde ou na doença, famoso ou sob o véu e grinalda do anonimato.
O casal perfeito é uma ficção, no cinema ou na publicidade de salsicha. O casal perfeito é uma fantasia necessária para o público do mundo inteiro. Uma obsessão midiática ao ponto da revista Vanity Fair divulgar anualmente uma lista dos pombinhos mais felizes dos Estados Unidos. Brady e Bündchen ganharam medalha de bronze no último ranking, perdendo apenas para Beyoncé/Jay-Z e os imbatíveis Obama.
Este não é um texto de fofoca, mas uma crônica de salão e de costumes –conceito chique usado pelo escritor francês Balzac (1799-1850) na sua A Comédia Humana. E você sabia que o cara que originou o termo balzaquiana não deu sorte com o assunto, embora tenha desejado ser um bom marido? Casou e no mesmo ano bateu as botas. Havia namorado 15 anos por carta com esta mesma moça, a polonesa Eveline Hanska.
Em ritmo de tecnobrega
Não, esta não é uma coluna de mexericos, mas precisamos reviver as cenas dos últimos capítulos sobre as celebridades citadas:
Gisele e o jogador de futebol americano, como li aqui no EL PAÍS, estão em crise –nada que diga respeito ao suposto episódio do chifre da babá etc. Chimbinha e Joelma, que não saíram na Vanity Fayr porém são tão populares no Brasil quanto a caipirinha e a feijoada completa, também estão em ritmo de um tecnobrega de fim de casamento, um amor que durou 18 anos e 15 milhões de discos vendidos com a banda Calypso.
Quanto tempo dura um casal perfeito? O suficiente para render uma boa e milionária disputa perante o excelentíssimo juiz. Alguns casais midiáticos, todavia, esticam o casamento apenas para manter o tilintar da máquina registradora no lar doce lar. Vale tudo, no jogo entre evidências e aparências, como diria uma música do gênero breganejo.
O casal exemplar da anônima “vida como ela é” também prorroga o drama. Por questão moral: teme o olho dos vizinhos perversos que secavam aquele relacionamento modelo, como o marido canalha e invejoso que citei lá no começo desta crônica. É um peso, com ou sem fortunas e camas repartidas, carregar o fardo da virtude nas costas.
Fofo ostentação
Para o casal perfeito do tipo “fofo”, fofo ostentação, a carga é mais pesada ainda, mesmo que os periquitos, de tão grudentos na sua algazarra de rotina, não percebam o perigo. Falo daquela dupla que até para a fila do “restaurante no kilo” vai de mãos dadas e troca beijinhos enquanto calcula as calorias da refeição.
Quero ver essa fofura toda é na hora de devolver o Neruda, como diz uma amiga irada com o emperiquitamento dos casais. Não, não se trata de uma mal-comida, como insultaria o coro machista, muito pelo contrário.
Casal bom é casal desobrigado do exemplo, do modelo, livre daquele cenário de propaganda de margarina
Devolver o livro do poeta chileno, com licença da sinédoque do caríssimo Chico Buarque, é aquela sofrida hora da divisão dos bens, trens e badulaques. Aí só resta bater o botar sem fazer alarde...
O casal perfeito, além de uma tremenda pretensão, é mesmo uma lenda urbana ou rural. Bom que assim seja. Casal bom é casal desobrigado do exemplo, do modelo, livre daquele cenário de propaganda de margarina –se bem que os anúncios amanteigados hoje em dia andam muito solitários ou apenas com uma mulher acompanhada de filhos, sinal dos novos modelos familiares.
O casal perfeito, normalmente, joga para o público, vende a ilusão do “até que a morte vos separe” do sacramento católico.
Casal bom é o casal bagaceiro, meio torto, “guache na vida”, errante e passional no romantismo, o casal que não faz questão de exibir virtudes ou dons superiores. Sabe aquela dupla que ninguém aposta um vintém ou um dólar furado? O julgamento da rua, do prédio, do bairro e da cidade é um só sobre os danados: esses dois não comem juntos o peru do Natal deste ano, não pulam as sete ondinhas no mar de Copacabana. Que nada, é o tipo de acasalamento que, no mínimo, cumpre lindamente a cartilha de Vinícius de Moraes, com um feliz e sincero “infinito enquanto dure”.
Xico Sá, escritor e jornalista, é comentarista do programa “Papo de Segunda” (GNT) e autor de “Big Jato” (Companhia das Letras), entre outros livros.
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