Marcelo Cicali, a alma do Bar Liguria
É um emblema para a cidade e para a cozinha chilena, que encontrou nele um refúgio

Há lugares que são tudo, ou quase tudo, na vida de uma cidade. Acontece em Santiago com o Bar Liguria, nascido um 10 de agosto, há 25 anos, no bairro de Providencia para se tornar um lugar essencial. Um emblema para a vida da cidade e para a cozinha chilena, que encontrou nele um refúgio para seus produtos e suas formas tradicionais. Também acabou sendo o centro nervoso onde a valorização da cozinha chilena começou a ser canalizada e foram acontecendo pequenas histórias que acabaram crescendo, como a Pebre, a associação que dinamitou as estruturas obsoletas que regiam a gastronomia chilena. Por trás de tudo isso, da história do Bar Liguria e dos novos tempos que vive a cozinha chilena, está Marcelo Cicali, uma referência curiosa e sempre diferente que tem ideias bem claras: “o Bar Liguria”, diz ele, “quer levar a cozinha chilena ao Chile”.
Marcelo Cicali participou com seu pai na fundação do negócio. Era uma local familiar, pequeno e bem diferente do atual e ele fez a primeira venda. “Era o dia de São Lourenço, o santo padroeiro dos cozinheiros”, lembra em voz alta enquanto conversamos em uma mesa meio escondida ao lado da porta, “eu preparei e vendi um chá, que foi a primeira venda da casa”. Muitas coisas aconteceram desde então. No Chile, nas ruas de Providencia, no Bar Liguria e na cozinha chilena e, de certa forma, quase todas passaram pelo salão deste local bagunçado, estranho, quente e singular que marca o início e um ponto de destino nos trajetos culinários mais recentes.
O que começou como um local minúsculo foi incorporando novos espaços com o tempo, roubados dos vizinhos, até se tornar um labirinto de refeitórios e salões nos quais a comida anda de mãos dadas com a música e as conversas tomam conta do lugar para definir o rumo do negócio. “Desde o primeiro dia eu me apaixonei por isso. Especialmente a oportunidade que me dava para ouvir as pessoas. Adorava ver as conversas, ver a atitude humana e as sensações que são provocadas pelos alimentos, a bebida, a música e de alguns momentos de dança: comer, beber, dançar e cantar. Esse é o Bar Liguria”.
Gosta da gente que come em silêncio e as emoções que nascem ao redor da cozinha de seu país
Converso com ele entre pratos de picorocos e piures, dois mariscos únicos, impossíveis de se encontrar em qualquer outro litoral do mundo. Também chegam uns ouriços e alguns ensopados que mostram os sabores quase eternos de uma cozinha familiar, culminando com uma caçarola bastante ortodoxa, a versão chilena do espanhol sancocho ou cozido. Cicali gosta que as emoções dessa cozinha sejam traduzidas como silêncios. “Quando uma pessoa come e fecha os olhos, estamos bem e no caminho certo”. Ele gosta de pessoas que comem em silêncio e as emoções que nascem ao redor da cozinha de seu país. “Alguma coisa acontece quando comemos o ensopado de huaca, a caçarola, o pebre ou a arbonara. Quando comemos algo tão nosso como o peixe-rei, o picoroco e o piure, acontece uma conexão, porque a cozinha é um espelho cósmico, no qual todas as nossas emoções se entrelaçam em uma panela com uma colher”.
O Bar Liguria nunca mais parou de crescer. Ao local original na rua Providencia se uniram dois outros, no mesmo bairro, e está em construção um projeto que ocupa um prédio inteiro em Lastarria – outro bairro da cidade –, definido como restaurante patrimonial e que inclui um auditório para apresentações e concertos. “Tentamos fazer um laboratório de ilusões onde se possa transmitir, revalorizar e dar novo significado a alguns pratos e assuntos importantes deste Chile que procura e caminha atrás de uma identidade que às vezes aparece e às vezes desaparece. Estamos deixando de lado a cozinha que nos comove. Quero voltar a me sentir uma criança sentada à mesa, com um sabor, um cheiro, com um prato que contenha a memória dos meus pais. Acho que no Liguria, todo dia, transformamos muita gente em criança de novo”.