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A Argentina oculta que assusta o Papa

Viagem à favela que fez o pontífice falar da “mexicanização” de seu país

Imagem do Papa no alto de um edifício da villa.
Imagem do Papa no alto de um edifício da villa.ricardo ceppi

Ao aproximar-se da villa 1-11-14, a favela mais perigosa de Buenos Aires, além da sujeira, dos carros queimados, dos barracos desordenados e de alguns zumbis que vagam perdidos vítimas do paco – pasta base de cocaína – chamam atenção as grafites que estão por toda parte: “Justiça para Maxi”. Maxi era Maximiliano Milesi, 18 anos, com uma filha de quatro meses. Morreu em um tiroteio em 10 de fevereiro, e todos na favela concordam: “Era um menino saudável, que estudava, foi confundido com outro porque usava a mesma moto”.

Conversando com os moradores se percebe claramente o terror que o narcotráfico provoca em uma verdadeira cidade de 70.000 habitantes no coração de Buenos Aires, o Bajo Flores. A villa 1-11-14, e o relatório sobre a organização La Alameda, que combate o trabalho infantil e cujo líder é Gustavo Vera, vereador de Buenos Aires e candidato à prefeitura, estão na origem de uma frase muito polêmica na Argentina e no México: a denúncia do papa Francisco sobre o risco de “mexicanização da Argentina”.

A Argentina já é, segundo a ONU, o terceiro exportador de drogas do continente, depois de Brasil e Colômbia

“Querido irmão: obrigado por sua mensagem. Vejo seu trabalho incansável a todo vapor. Peço muito para que Deus proteja você e os alamedenses. E oxalá estejamos a tempo de evitar a mexicanização. Estive falando com alguns bispos mexicanos e a coisa é aterrorizante”, escreveu o papa a Vera, que não é católico. Dirige uma organização de esquerda, a Bien Común, e ficou amigo de Francisco – quando ainda era Bergoglio – em suas múltiplas batalhas conjuntas nas favelas de Buenos Aires.

O papa leu o relatório duríssimo da organização de Vera, feito por Jorge Rodríguez, um ex-guerrilheiro que passou dois anos visitando a favela enviado pelo Governo para analisar a situação. Produziu 174 relatórios para o Executivo sobre a situação e a corrupção policial e, cansado de não ser ouvido, apresentou a denúncia que causou grande impacto na imprensa argentina. “Há 300 soldados peruanos ali dentro, muitos provenientes do antigo Sendero Luminoso, com todo tipo de armamento, fuzis FAL e AK47, que controlam 10 laboratórios de cocaína. Trazem técnicos especializados do Peru, porque produzir cocaína é muito difícil. Há 15 quarteirões de um território completamente liberado onde a polícia tem ordens explícitas de não entrar. Na realidade a força policial está ali para que ninguém incomode os senhores da droga. Existem pessoas que ficam dois anos sem sair dali”, afirma. A denúncia diz que todos obedecem Marcos Antonio Estrada González, suposto líder do narcotráfico peruano que passou um tempo na prisão e agora está em liberdade, apesar das pendências.

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As linhas tortas do papa Francisco

Depois de ler o relatório, Francisco concedeu uma entrevista à La Cárcova News, o jornal de outra favela famosa de Buenos Aires. E foi claro: “Existem países que já são escravos da droga. Existem países ou áreas onde tudo está sob o domínio da droga. Com relação à Argentina, posso dizer só isto: 25 anos atrás era um lugar de passagem da droga, hoje em dia se consome. E não tenho certeza, mas acredito que também se fabrica”. O papa convidou Vera ao Vaticano, para expor na residência papal, no dia 16, o problema da droga na Argentina.

O padre Hernán, que vive na favela há 7 anos e a percorre com um agasalho do Boca Juniors e um enorme molho de chaves na mão com o qual controla uma escola, uma igreja, abrigos de idosos e de ajuda a toxicômanos, não gosta que se fale da 1-11-14 só por causa das drogas. Porque ali vivem milhares de pessoas que lutam para sair da miséria. Ele prefere ver que as coisas estão melhorando pouco a pouco. A poucos metros de sua escola há postos de polícia com armas pesadas, que todos na favela criticam por sua inação. “Dizem que não fazem nada, mas eu lhes digo: era muito pior quando não estavam, não tínhamos a quem recorrer. Aqui sempre houve mortes, agora você pode reclamar”, conta. “Se só falarmos desta favela por causa do narcotráfico, como vamos conseguir que um garoto daqui que tenta melhorar de vida não fique estigmatizado?”, queixa-se.

Outros moradores são mais pessimistas. A senhora María (nome fictício por medo dos traficantes), com seus nove filhos, mora há 30 anos no local e está desesperada. Na semana passada, uma de suas filhas foi jantar em sua casa e acabou ficando tarde. Na volta, cruzou a favela com um menino pequeno nos braços e, quando passava por uma zona de conflito, dispararam em sua direção. “Era para assustá-la, para que não volte a andar por ali de noite. Eles controlam tudo, brigam por cada quadra, matam por poucos metros. E não querem movimento de noite”. Meia hora antes da entrada dos jornalistas, um homem drogado fora de controle andava atirando para cima. “Há armas por toda parte. As pessoas estão aqui por falta de opção, porque é o único lugar onde se consegue uma moradia por 1.000 pesos (100 dólares) ao mês. Que pode, vai embora”, garante.

Sua amiga Viviana (nome fictício) e outras mulheres mantêm um refeitório para ajudar quem está ainda pior que elas. “Morar aqui não é fácil. A pasta base destruiu tudo, aí mudou. Começam com os meninos, eles são controlados assim, são comprados com um play station. Dizem que o paco é barato, uma dose pode custar 10 pesos (pouco mais de três reais). Mas dura sete minutos, sabem de quantas precisam por dia? É o que os prende. Meu cunhado passou por isso. Roubava de nós. Estão fora de si. E estão nas mãos dos traficantes. Aqui o Estado não chega, o narcotráfico decide sua vida, por onde pode andar, o que pode fazer”, explica desesperada, mas acredita que existe solução: “Sempre há alguém que te ajuda a sair da droga, se houvesse mais recursos, seria possível. Vi isso acontecer com muita gente. Mas é preciso que levemos a sério. Se não isto vai se afundar”.

Há armas por toda parte. As pessoas estão aqui por falta de opção María, moradora

A Argentina já é, segundo a ONU, o terceiro exportador de drogas do continente, depois de Brasil e Colômbia, e o segundo consumidor, só depois dos Estados Unidos. Para os argentinos, acostumados a ser o país mais tranquilo de um subcontinente duro, é difícil acreditar, e exceto em Rosário, ao norte de Buenos Aires, onde se chegou a 1.000 mortos por guerras do tráfico desde 2004, não há um debate social forte. Muitos não podem imaginar que tudo isto esteja acontecendo a apenas seis quilômetros da Casa Rosada e da Recoleta, o bairro francês com algumas das mansões e os edifícios mais espetaculares da América, onde a vida é completamente diferente.

Fora dos bairros em conflito, a Argentina continua sendo um país relativamente tranquilo: tem o terceiro índice de criminalidade mais baixo da América Latina, depois de Cuba e Chile. Com 5,5 assassinatos por ano por cada 100.00 habitantes, está muito longe dos 82 na Venezuela, 27,5 da Colômbia, 23,7 do México e os 21,8 do Brasil. Mas o terror avança em algumas áreas.

Vera fala com convicção: “As pessoas estão preocupadas, mas o problema é o Estado. A droga e a lavagem de dinheiro estão entrando em todas partes, também no negócio do futebol. Isto é uma guerra do ópio, não se enganem. O processo de mexicanização não está relacionado à vulnerabilidade social, mas a um Estado corrupto. Também no México as pessoas se indignaram há 10 anos quando se falou que havia um processo de colombianização. E quando se instala o debate na sociedade já é muito tarde, o narcotráfico já está por toda parte. É o que acontecer no México. Pode acontecer o mesmo aqui, temos de impedir. A visita do papa à Argentina em 2016 vai ser essencial. Ainda é possível parar”.

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