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A QUARTA PÁGINA

Religião e violência

Nem nos textos sagrados nem nas condutas encontramos diferenças radicais entre as religiões. Mas o islã, como cultura, continua sem se adaptar à modernidade porque não houve revoluções de cunho liberal

José Álvarez Junco
EDUARDO ESTRADA

O abominável atentado contra o Charlie Hebdo, mais um dos atos terroristas acolhidos pelo manto da jihad islâmica, voltou a colocar sobre a mesa a relação entre religião e violência. Uma relação que entra em choque, em princípio, com a ideia de que as mensagens religiosas são a base que sustenta princípios morais universais entre seus fiéis. Os muçulmanos do mundo inteiro, com certeza, se apressaram a condenar esses assassinatos, protestando que nada têm a ver com as doutrinas professadas no Corão. Mas a história registra matanças demais em nome da fé para que aceitemos, sem mais, protestos tão angélicos.

Em nosso descrente mundo europeu, hoje se tende a pensar exatamente o contrário: que há algo inerente às religiões (especialmente a certas religiões) que transforma seus fiéis em perigosos para quem não comunga com suas ideias; que a religião, baseada na fé e não na razão —ao contrário do pensamento científico—, fomenta a violência. Daí a dizer que o terrorismo tem uma raiz religiosa não há mais do que um passo.

É verdade que o Corão contém mensagens pacíficas: “Combatei por Alá [...]mas não vos excedais; Alá não ama os que se excedem” (2:190); “Se colocas a mão sobre mim para matar-me, eu não vou colocá-la sobre ti, porque temo Alá, senhor do universo” (5:28); “Quem mata uma pessoa é como se matasse toda a humanidade; quem dá a vida a uma pessoa, é como se desse a toda a humanidade” (5:33). Mas tão belos conselhos são esquecidos quando o profeta prescreve o que fazer com os não crentes, a quem “nem sua fazenda nem seus filhos lhes servirão de nada” mas como “combustível para o fogo” (3:10); “Que não creiam os infiéis que vão escapar. Não poderão! Preparai contra eles toda a força, toda a cavalaria...” (8:59); “Crentes! Combatei contra os infiéis que tenhais por perto! Sê duros! Sabei que Alá está com os que o temem!” (9:123); “Matai os idólatras onde quiser que os encontreis; capturai-os, sitiai-os, tende-os emboscadas em toda parte” (9:5).

Mensagens igualmente contraditórias estão no Antigo Testamento. O mesmo Levítico que prescreve “amarás ao próximo como a ti mesmo” (19:18) recomenda: “Perseguirei vossos inimigos, que cairão diante de vocês ao fio da espada” (26:7-8). E Jeová ordena a Saul o genocídio dos amalequitas com terríveis palavras: “Não perdoai; matai homens, mulheres e crianças, incluídos os de peito” (Sam., I., 15:3). Nos Evangelhos, Jesus Cristo aconselha que quem seja esbofeteado ofereça a outra face e, se querem nos tirar a túnica, presenteie também com o manto (Mat., 5:39), mas adverte que “não veio a colocar paz sobre a terra, mas espada” (Mat., 10:34). Nos momentos prévios à prisão, previne o discípulo desarmado que “venda seu manto e compre uma espada”; instantes depois, ao chegar à quadrilha que o procura, um dos discípulos pergunta: “Senhor, ferimos com espada?”, e, antes de receber resposta, corta a orelha de um deles; Jesus lhe diz: “Basta já”, e cura a orelha cortada (Luc., 22:36-51). Mas esse mesmo personagem manso se deixa levar pela indignação e ataca a chibatadas os mercadores do templo.

Os fanáticos é que se escudam nos textos que lhes convêm para justificar suas pulsões

Se dos textos revelados passarmos para a história cristã, encontraremos igualmente exemplos para as condutas mais díspares. Alguém belicoso e antissemita recorrerá a antecessores como Domingo de Guzmán ou Vicente Ferrer, para mencionar só os santificados, ou invocará as Cruzadas ou a Inquisição; alguém pacífico e ecologista, a Francisco de Assis, Las Casas ou Madre Teresa de Calcutá. Um nacionalista conservador celebrará a memória de Recaredo ou Isabel, a Católica; um esquerdista, a do jesuíta Ellacuría ou do arcebispo Oscar Romero. Um misógino encontrará nas escrituras mil frases e condutas que ratificarão seus preconceitos; e a um feminista não faltarão passagens bíblicas em que se apoiar.

Na história, o islã não se distinguiu de outras religiões por uma intolerância ou sede de sangre especiais. Referindo-se a nossa Península, a região muçulmana foi mais tolerante do que a cristã. Os cristãos sobreviveram e praticaram seu culto sob o califado de Córdoba, enquanto os muçulmanos foram obrigados a se converter ou sair da monarquia católica —e até convertidos, alguns sinceramente, sofreram nova expulsão um século mais tarde.

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Na Europa, a reforma luterana inaugurou um período particularmente sangrento, com incidentes como A Noite de São Bartolomeu, em que católicos franceses esfaquearam vários milhares de protestantes. No século XX, os maiores massacres, com milhões de vítimas, foram de inspiração pagã, mas se produziram em uma Europa de raízes culturais cristãs; parecidas foram algumas matanças asiáticas, em áreas de tradição religiosa taoísta, budista ou confuciana.

Poucos incidentes comparáveis se registram no mundo muçulmano, salvo o genocídio armênio – tampouco estritamente religioso. A ferocidade atual da Al Qaeda ou do Estado Islâmico não deve nos fazer esquecer de personagens como Malala Yousafzai, que arrisca sua vida em defesa da educação das meninas, ou os advogados iranianos ou paquistaneses presos ou assassinados por defender os direitos humanos e a tolerância religiosa. São heróis da liberdade e são muçulmanos.

Se uma identidade cultural se sente protegida ou em risco de desaparecer, surgem as tensões

Assim, nem os textos nem as condutas exemplares permitem distinguir radicalmente entre umas religiões e outras. Todas as mensagens reveladas são maleáveis; todas requerem árduos trabalhos de interpretação; em todas encontramos afirmações que ratificam nossas posturas preconcebidas. As doutrinas, além disso, não se traduzem de maneira automática em ação. Os intolerantes e fanáticos é que se amparam nas mensagens que lhes convêm para justificar seus impulsos. Mais útil, portanto, que comparar textos, parece-me comparar as situações históricas em que se encontram as identidades culturais.

Isso porque a religião é uma identidade coletiva, semelhante à linhagem ou a nação. Uma identidade que nos insere em um determinado grupo humano, do qual recebemos nome e cultura. E a identidade é algo muito diferente da crença, como demonstra o simples fato de que, na Espanha, a porcentagem de pessoas que se consideram católicas é superior à das que declaram acreditar em Deus.

Essas identidades culturais, das quais a religião é parte, passam por diferentes fases. Quando nossa forma de vida é invejada e imitada por todos, podemos ser otimistas e generosos. Mas quando é desprestigiada, e corre o risco de desaparecer, surgem as tensões e as reações violentas.

Nos últimos séculos, as identidades religiosas tradicionais tiveram de adaptar-se ao choque com a modernidade. O catolicismo sofreu o embate do luteranismo, das revoluções filosófica e científica, o Iluminismo, a industrialização, as revoluções liberais, a democracia. Aborrecido com a incompreensão universal, Pio IX condenou a modernidade em sua totalidade e se trancou no Vaticano. Mas outro papa, 70 anos depois, abandonou a clausura e aceitou o inevitável. O inevitável era a separação entre a Igreja e o poder político, a liberdade de opinião, a diversidade de crenças entre os cidadãos, o desaparecimento do papel do clero como monopolizador das verdades sociais.

O islã – como cultura, não como religião – não teve protestantismo, iluminismo nem revoluções liberais. E continua sem adaptar-se à modernidade em, pelo menos, três terrenos fundamentais: a separação Igreja-Estado, conseguida no Ocidente na esteira do iluminismo; a igualdade de gênero, conquista dos movimentos feministas do XIX e XX; e a pluralidade de crenças como base da convivência livre. Sem aceitar esses princípios, as tensões produzidas pelo impacto da modernidade levarão ao agastamento e, nos mais loucos, à violência assassina. Com isso, pode-se dizer que, sim, no islã há problemas específicos que geram tensões e, em casos extremos, terrorismo. Que, no entanto, não derivam de suas doutrinas – tão maleáveis como outras –, mas de sua inadaptação à modernidade.

José Álvarez Junco é historiador. Seu último livro é Las histórias de España (Pons / Crítica).

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