Cúpula marca refundação da Comunidade Ibero-Americana
Presidenta Dilma Rousseff falta à reunião, e presença de Raúl Castro ainda é dúvida
Quase um quarto de século após seu nascimento, numa reunião de cúpula realizada em 1991 na cidade mexicana de Guadalajara, a Comunidade Ibero-Americana enfrenta hoje e amanhã em Veracruz, também no México, o desafio de sua refundação. Incapazes de concorrer com os novos fóruns continentais – como a CELAC (Comunidade de Estados da América Latina e Caribe), a Unasul e a Aliança do Pacífico –, as cúpulas ibero-americanas definharam nos últimos anos, a tal ponto que metade dos mandatários convidados faltou às reuniões do Paraguai (2011) e Panamá (2013).
Para evitar novos fiascos, a primeira medida foi espaçar as cúpulas, que a partir desta edição já não serão mais anuais, e sim bienais, alternando-se com as reuniões entre a CELAC e a União Europeia – a de 2015 será em Bruxelas. Dessa forma, a próxima cúpula ibero-americana será em 2016 na Colômbia.
A cúpula de 2014 transcorre num momento econômico especialmente delicado. Nem a Espanha nem Portugal conseguiram dissipar a crise, e na América Latina já vão longe os áureos tempos de PIBs com crescimentos próximos a 5%. A região, embora com diferenças notáveis entre países, sofre uma aguda desaceleração, a qual motiva temores de ressurgimento das tensões sociais.
O hemisfério, apesar dos avanços dos últimos anos, continua mostrando enormes desigualdades na distribuição da renda
O hemisfério, apesar dos avanços dos últimos anos, continua mostrando enormes desigualdades na distribuição da renda. Uma marca à qual se soma a violência, especialmente no México e na América Central. A cúpula ibero-americana, centrada na educação, cultura e inovação, passará de relance por esses problemas, mas o clima em Veracruz não é nada otimista. Mesmo Governos que revalidaram suas posições de poder em eleições recentes, como no Brasil, ou que ainda têm um longo horizonte de mandato pela frente, como o do México, se veem diante de dolorosos quebra-cabeças para resolver.
Nesse cenário, duas baixas notáveis já foram confirmadas entre os 22 mandatários – 19 latino-americanos, mais Portugal, Espanha e Andorra. A brasileira Dilma Rousseff faltará por estar envolvida na montagem de seu ministério para o segundo mandato, enquanto a argentina Cristina Fernández de Kirchner alegou motivos de saúde – os quais não a impediram, no entanto, de comparecer à recente cúpula da Unasul no Equador.
A maior dúvida é a presença do presidente cubano, Raúl Castro. O chanceler espanhol, José Manuel García-Margallo, viajou no final de novembro a Cuba para tentar convencê-lo a viajar para a cúpula ibero-americana, da qual a ilha não participa desde 2000. O ministro espanhol, porém, nem chegou a ser recebido por Castro. A realização de uma cúpula de nações do Caribe em Havana, nas mesmas datas, é um empecilho adicional, mas a diplomacia espanhola acredita que Castro estará em Veracruz pelo menos no segundo dia, e não só graças ao empenho de Margallo: após mais de uma década de frieza diplomática entre Cuba e México, coincidindo com os mandatos presidenciais do partido conservador PAN, o presidente Enrique Peña Nieto iniciou uma política de aproximação com o regime comunista, perdoando 70% da dívida que a ilha tinha com o México.
Enrique Peña Nieto iniciou uma política de aproximação com o regime comunista, perdoando 70% da dívida que a ilha tinha com o México
Quem está desde sábado em Veracruz é o rei da Espanha, Felipe VI, que participa pela primeira vez de uma cúpula ibero-americana na qualidade de chefe de Estado. Como príncipe, dom Felipe já havia participado dos dois encontros sediados na Espanha, em 2005 (Salamanca) e 2012 (Cádiz). Além disso, no ano passado, viajou ao Panamá no lugar de seu pai, o rei Juan Carlos, que se recuperava de uma intervenção. Como não era chefe de Estado à época, não pôde participar dos debates. Agora estará nas reuniões a portas fechadas, quando os mandatários falam sem as amarras da ordem do dia, e discursará publicamente em seis ocasiões, dentro e fora da cúpula.
Veracruz será também a estreia da nova secretária-geral Ibero-Americana, a costarriquenha Rebeca Grynspan, que substituiu o veterano Enrique Iglesias. Grynspan se empenha em fazer da comunidade ibero-americana um instrumento útil e atraente, buscando seu próprio espaço. Mais do que um simples fórum de discussão política, trata-se de dar a esse grupo um enfoque pragmático e fomentar a cooperação em campos específicos de interesse comum.
A temática da cúpula de Veracruz – educação, inovação e cultura – dá uma ideia dos futuros rumos. Um dos projetos-vitrine da comunidade ibero-americana é a aliança pela mobilidade de talentos, que inclui pesquisadores, professores universitários e estudantes. Também será lançado na cúpula o cartão jovem ibero-americano, que oferecerá descontos e promoções por intermédio de acordos com empresas.
Em um continente jovem, melhorar sua formação e facilitar oportunidades de trabalho é a única garantia de desenvolvimento
Algumas destas iniciativas ainda são incipientes e precisam de recursos, como o programa de intercâmbio universitário – comparado ao europeu Erasmus – destinado a conceder bolsas de estudo em universidades ibero-americanas, podendo beneficiar 200.000 alunos em cinco anos. Em um continente jovem – onde 25% da população tem entre 15 e 29 anos –, melhorar sua formação e facilitar oportunidades de trabalho é não só a única garantia de desenvolvimento como também a melhor forma de enfrentar os graves problemas de segurança pública.
O desaparecimento de 43 estudantes em Iguala, em 26 de setembro, expôs a conivência da classe política e das polícias com o organizado, obrigando Peña Nieto a empreender uma profunda reforma do aparelho de segurança. O tema da violência estará na pauta do almoço que o rei Felipe VI e o presidente do Governo espanhol, Mariano Rajoy, terão na segunda-feira com Peña Nieto. Mas o apoio não será apenas retórico: a Guarda Civil espanhola dará assessoria para a formação e organização de um novo corpo policial civil no México.
No campo diplomático, a anunciada presença em Veracruz do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, poderia permitir uma reconciliação com a Espanha, depois de Maduro retirar seu embaixador em Madri, como protesto pela audiência de Rajoy com a esposa do líder oposicionista venezuelano Leopoldo López, que está preso.
Paralelamente à cúpula ocorrem numerosas conferências, que juntas consolidam a existência de uma sociedade civil ibero-americana, indo além das reuniões entre dirigentes políticos. É o caso do Encontro Empresarial e do Fórum de Comunicação, que reúne executivos das principais empresas de comunicação dos dois lados do Atlântico, como Televisa e grupo PRISA.
O que não haverá, ao contrário de outras edições, será um programa de primeiras-damas ou, mais exatamente, de cônjuges de mandatários, o que impediu que a rainha Letizia acompanhasse Felipe VI. Embora os organizadores mexicanos não tenham oferecido explicações para isso, fontes diplomáticas acreditam que a intenção foi fugir de qualquer imagem de frivolidade, especialmente depois do escândalo causado por detalhes sobre uma mansão pertencente à primeira-dama do México, Angélica Rivera.
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