Uma camisa rubro-negra ao vento
É triste quando se chega a situação de celebrar não a excelência, mas a mediocridade
Domingo, a torcida do Flamengo comemorou aliviada a vitória de 3 a 2 sobre o Coritiba. Não porque o resultado alçasse o clube a uma posição privilegiada entre os melhores do país, mas simplesmente porque o desfecho do jogo impede que o time caia para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro, a chamada Série B. Triste quando se chega a essa situação, a de celebrar não a excelência, mas a mediocridade – frase, aliás, que poderia ser aplicada a outros setores da nossa sociedade... Mas não é sobre este Flamengo que quero discorrer, mas sobre outro, um que vai se dissipando como poeira na memória: o Flamengo de 1981, campeão carioca, campeão da Copa Libertadores da América, campeão mundial interclubes e base para a conquista do bicampeonato brasileiro em 1982 e 1983.
1981 foi um ano estranho para mim. Começou com uma estada de alguns dias na casa de meu tio Antônio, único a ainda resistir na lida com as coisas do campo, ocupando o que fora um dia a fazendola dos Ruffato, na colônia italiana de Rodeiro. Na infância, ali transcorriam minhas férias – na légua que separa o povoado da roça cumprimentávamos as diferentes janelas debruçadas à beira da péssima estrada-de-chão. Agora, só ruínas pelo caminho: o mato sufocava os quintais, o vento esparramava as vozes. Já ninguém habitava aqueles ermos. Percebi que parte importante da minha vida se esfumava ali.
O Brasil mudava de forma acelerada. Em maio, uma bomba explodiu dentro de um Puma estacionado no pátio do Riocentro, no Rio de Janeiro, onde artistas promoviam um show em homenagem ao Dia do Trabalho. Um sargento do Exército morreu, um capitão ficou ferido. As ruas de todo o país entulharam-se de manifestações contra a ditadura militar. Em Juiz de Fora, onde então estudava, fomos duramente reprimidos pela polícia. Respondíamos com poesia... Nas manhãs do terceiro sábado de cada mês, ocupávamos com estardalhaço o calçadão da Rua Halfeld, ponto convergente da cidade. Estendíamos um varal nas imediações do Cine Central e nele pendurávamos, com pregadores de roupa, poemas datilografados ou manuscritos, nossos e alheios. Numa banquinha, vendíamos o Abre-Alas, um folheto mensal de vinte e quatro páginas de literatura editado por nós, e livros mimeografados. Com o megafone, líamos os textos, fazíamos discursos políticos, incomodávamos...
O mundo, assustado, mantinha-se em alerta após os atentados contra o presidente norte-americano Ronald Reagan, em março, e contra o papa João Paulo II, em maio – mas comentava-se mesmo era sobre o “casamento do século”, ocorrido em 29 de julho, entre o Príncipe Charles e a Princesa Diana, transmitido por televisão e assistido por mais de um bilhão de pessoas. Do que não se falava, ou se falava pouco, e em surdina, era a respeito de uma nova e misteriosa doença, que acelerou brutalmente o número de pacientes acometidos com o sarcoma de Kaposi, uma espécie rara de câncer de pele que debilita o organismo e abre espaço para outras infecções oportunistas, e que depois viria a ser conhecida como síndrome de imunodeficiência adquirida, a AIDS.
Estudante pobre, peregrinava cabisbaixo pelas ruas, ora entusiasmado com a luta contra a ditadura, ora melancólico com a minha falta de perspectivas pessoais. Mas aí, no dia 23 de novembro, o Flamengo ganhou de 2 a 0 do clube chileno Cobreloa, no Estádio Centenário, em Montevidéu, conquistando a Taça Libertadores da América. Alguns dias depois, em 6 de dezembro, o Flamengo venceu o Vasco da Gama por 2 a 1, tornando-se campeão carioca. Mais uma semana e o time formado por Raul; Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Lico e Nunes, liquidava, ainda no primeiro tempo, a partida contra o Liverpool, 3 a 0, diante de 62 mil pessoas, em Tóquio, incendiando a madrugada. Naquele dia, eu não era apenas mais uma camisa rubro-negra na multidão. Eu compartilhava minha alegria, eu era alguém.
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