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A QUARTA PÁGINA
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Brasil, o mundo de amanhã

No novo mandato de Dilma Rousseff, o país enfrenta o desafio da modernização. Seria bom apostar nos talentos mais jovens e atender as expectativas de uma geração que exige um futuro melhor

ENRIQUE FLORES

Brasil e América Latina estão novamente numa encruzilhada. A região inteira está se despedindo de uma belle époque, um tempo de altas taxas de crescimento impulsionadas pelo empurrão das matérias primas. Com a irrupção da China no xadrez mundial, no início dos anos 2000, a América Latina viveu uma bonança sem precedentes. Esse motor está parando. O efeito do conto chinês ainda se mantém. Mas estamos vendo o fim de uma época. Como em “O Mundo que Eu Vi”, aquele canto de cisne escrito por Stefan Zweig no Brasil, toda a região deve despedir-se dos velhos tempos que passaram. E não voltarão.

As eleições brasileiras, que terminaram com a apertada reeleição de Dilma Rousseff, reforçam uma virada na região. Em todos os países – inclusive no sempre exemplar Chile – vê-se uma economia política da impaciência. Os jovens, que estão entrando no mercado de trabalho, pedem melhores condições e as classes médias, que se fortaleceram com a bonança, pedem melhores serviços públicos, mais e melhor educação, saúde, transporte. Os protestos de rua vistos nos últimos meses em Santiago, São Paulo e Lima têm uma mesma matriz, uma crescente demanda por melhor redistribuição das riquezas das nações.

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Quando estava na OCDE, dirigindo o Centro de Desenvolvimento, publicamos – era o final dos anos 2000 e o dragão chinês ainda sobrevoava os Andes e o Amazonas – um estudo detalhado das políticas fiscais na região. Calculamos assim como os coeficientes GINI, que medem a desigualdade, ajustavam-se ou não antes e depois das transferências fiscais. Em outras palavras, procurávamos investigar se as políticas fiscais na América Latina eram redistributivas. E a resposta foi um claro não: do México até Brasília, passando por Bogotá ou Caracas, os coeficientes GINI antes e depois de impostos não se ajustavam. Algo muito diferente ocorre na Europa, onde as desigualdades antes e depois de transferências fiscais se ajustam em vários pontos. As políticas fiscais são redistributivas na Europa, mas não na América Latina. Com a ascensão das classes médias, a pressão só vai aumentar.

As políticas fiscais são redistributivas na Europa, mas não na América Latina

A América Latina e Brasil terão de enfrentar esse desafio. Nem sempre será uma questão de mais investimento, mas muitas vezes de melhor investimento em saúde, educação e transporte. Será, acima de tudo, uma questão de fazer esse investimento alcançar as populações mais pobres, e construir uma educação mais redistributiva, rodovias que conectem com os povoados mais isolados e uma saúde mais universal. Muitos países estão conscientes desses desafios, como mostram as políticas implementadas no México, na Colômbia e no Peru. Entretanto o tempo corre, o relógio da bonança chinesa se esgota e os avanços estão demorando. Foi exatamente o que disseram os protestos de rua no Brasil. O custo total da Copa do Mundo 2014, celebrada no Brasil, superou os 11,6 bilhões de dólares, quer dizer, o triplo da Copa da África do Sul, em 2010. Esse custo representa 60% do orçamento da educação pública no país e 30% da saúde. Apenas 14% das estradas brasileiras estão asfaltadas – em contraste com 64% na China ou 38% no México –. O que os brasileiros criticaram foi essa falta de prioridades num país que agora ostenta estádios de primeiro mundo e educação, saúde e transporte que continuam sendo do terceiro mundo.

O mundo de ontem termina. O Brasil dos anos Lula, com o Cristo do Corcovado subindo como um foguete da capa da The Economist, é passado. Com Dilma novamente no poder, o país terá de enfrentar desafios singulares. O Brasil de ontem crescia a taxas anuais médias de 4% do PIB (entre 2003 e 2010). Em 2014, entrou em recessão técnica, a inflação está acima do teto estabelecido pelo banco central e a competitividade e produtividade do país estão em baixa, o que repercute negativamente no crescimento potencial. Entre 2008 e 2013, o Brasil esteve entre os 10 maiores destinos mundiais de investimento estrangeiro, com uma média anual de 53 bilhões de dólares. Para continuar nessa posição, precisará lidar com mais uma onda de reformas estruturais.

O Brasil não é um país qualquer. É a metade do continente sul-americano. Tem 200 milhões de habitantes, mais que o restante da América do Sul. O investimento estrangeiro despejado no país (64 bilhões de dólares) equivale ao total dos demais países. Há mais celulares que habitantes no país, e mais que em todo o resto do continente. É o pulmão ecológico do planeta e é também a sétima potência econômica do mundo. O que ocorre ali, portanto, não é indiferente ou anedótico para a região e os mercados internacionais. O que o Brasil fizer (ou deixar de fazer) repercutirá na região também. É, por exemplo, curioso que a Ásia se lance numa corrida desenfreada por inovação e tecnologia e a região ainda esteja pensando (como a Espanha) na aposta: enquanto a altíssima tecnologia corresponde a mais de 25% das exportações chinesas e sul-coreanas, no Brasil e no México ela corresponde a apenas 10% e 15% do total respectivamente. Enquanto a Coreia e a China já investem 4,4% e 2% de seu PIB respectivo em pesquisa e desenvolvimento, o Brasil mal alcança 1,2% (comparável ao 1,3% da Espanha), à frente de México e Chile, com apenas 0,5% ambos.

Os estádios do Brasil são de primeiro mundo. A educação, a saúde e o trasnsporte, de terceiro

Como todos, o Brasil (e por extensão a América Latina) faria bem em apostar mais em seu talento jovem. Enquanto a Coreia do Sul, como país, encabeça a lista do famoso ranking PISA da OCDE, o Brasil está na lanterna, na 59ª posição (logo atrás de México e Chile, respectivamente a 52ª e 54ª posição). E entretanto, o país transborda talento. Quem sabe, por exemplo, que um dos fundadores do Facebook é brasileiro? Ou que o criador da famosa Xbox da Microsoft também é brasileiro? A última pesquisa dos millenials (os jovens nascidos logo antes da virada do milênio) traz uma notícia alentadora para o Brasil e toda a região: os jovens latino-americanos se percebem como líderes digitais. Mais que todos os outros, europeus e norte-americanos incluídos. Encaram o futuro com otimismo: 81% dos millenials brasileiros pensam que os melhores tempos estão por vir (em comparação com 41% na Europa), uma cifra comparável à de toda a região (78%). A América Latina é, assim, a região do mundo que tem mais jovens que se percebem como líderes do milênio, digitais, criativos, capazes de impactar na sociedade: Colômbia e Peru (com 27% e 26%) lideram o ranking, junto com Chile (22%), México (21%), e Brasil (18%). Todos estão (muito) à frente dos Estados Unidos (16%), da Alemanha (12%) e da Espanha (6%).

Se o Brasil (e América Latina) quiser ganhar a copa do futuro, terá de apostar mais nessa juventude ansiosa por conquistar o mundo. Essa juventude é a mesma que está tomando as ruas aos gritos, atacando a política nas redes sociais ou criando um vazio empresarial no mundo digital. Aqui o continente tem uma mina de talentos sem igual. Esperemos que não desperdice essa bonança e se transforme em um continente 3.0, e São Paulo e Rio se assemelhem mais à imagem de Seul ou Tel Aviv.

O que está em jogo na América Latina é que tipo de país e região os latinos querem ser. E isso também vale para a Espanha. Os latinos gostam de golear, ganhar copas (e se desesperam quando perdem). Deveríamos colocar a mesma paixão em golear e ganhar o campeonato digital. Seria muito melhor. O Brasil é o país do jogo bonito; esperemos que seja também, num futuro não tão distante, país da inovação bonita.

Javier Santiso é professor de Economia da ESADE Business School. Publicou Banking on Democracy: Financial Markets and Elections in Emerging Countries (MIT Press, 2013) e prepara para 2015 um novo livro, Espanha 3.0.

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