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O México ainda não consegue por um fim à tortura por parte da polícia

A nova presidência trouxe uma redução nas queixas, mas a ONU, especialistas e ONGs denunciam que a impunidade continua amparando muitos abusos policiais

Jan Martínez Ahrens
Rogelio Anaya, uma das vítimas da tortura da polícia mexicana.
Rogelio Anaya, uma das vítimas da tortura da polícia mexicana.Mario Guzmán (EFE)

Quatro anos depois, ele volta para a frente das câmeras. É alto e magro. Usa uma camisa simples de manga curta e ergue o queixo em um gesto de orgulho. Seu olhar passeia entre as dezenas de jornalistas que aguardam que ele fale. Chama-se Rogelio Anaya, tem 31 anos e em 13 de agosto de 2010, algemado e com olhos vidrados, foi apresentado ao mundo pela Polícia Federal como um dos autores do atentado com carro bomba que tirou a vida de três pessoas e feriu sete na Ciudad de Juárez. Depois de ser apresentado, sua confissão, gravada em vídeo pelos agentes, foi emitida nas grandes redes de televisão. Naquele momento, Anaya era escória. Agora, depois de um longo inferno, as coisas mudaram. Todas as acusações foram retiradas e é ele quem vai a público para denunciar. A Anistia Internacional o apoia e apresenta seu caso como exemplo de confissão obtida sob tortura, uma prática que, segundo a organização, continua sendo amplamente utilizada pelas forças militares e policiais do México. Não é uma opinião nova. O relator da ONU para essa questão, Juan Méndez, denunciou recentemente que, amparados pela impunidade, esses abusos constituem uma “endemia generalizada” no país norte-americano. Rogelio Anaya, casado e com dois filhos, confirma.

"Peço que meu nome seja limpo", exige uma vítima

“Sou um sobrevivente e peço que meu nome seja limpo”, diz. Antes de falar, respira fundo. Percebe-se que está fazendo um esforço para se conter quando relata como, depois de ser detido graças a uma ligação anônima, foi submetido durante mais de 36 horas a um carrossel de aberrações: socos, descargas elétricas, asfixia com saco plástico e o “tehuacanazo” (introdução violenta de água com gás pelo nariz). O resultado foi a confissão. Mas Anaya não deu o braço a torcer e, da prisão, deu início a uma luta extenuante. Em 2013, com o Governo de Enrique Peña Nieto, a Procuradoria prometeu que, se fossem encontrados indícios de tortura, as acusações seriam retiradas. E foi o que aconteceu. Depois de três anos preso, Anaya ficou livre, mas estigmatizado. “O problema é que nenhum policial foi processado pelo que fizeram. E isso é o normal nesse país”, destaca Rupert Knox, da Anistia Internacional, oferecendo um dado revelador: das 7.164 queixas por tortura e abusos recebidas entre 2010 e 2013 pela Comissão Nacional de Direitos Humanos, nenhuma acabou em condenação.

O apogeu na denúncia dos abusos policiais coincidiu com o mandato do presidente Felipe Calderón (2006-2012), quando o combate ao narcotráfico entrou em fase aguda e deixou mais de 70 mil mortos. A mudança presidencial trouxe a promessa de melhora e uma queda de 30% nas queixas. A Procuradoria abriu mais investigações e o Executivo fez uma afirmação pública de sua rejeição a essas práticas. Inclusive sob as ordens da justiça internacional, reconheceu a responsabilidade do Estado em casos tão flagrantes quanto o do pedreiro Ananías Laparra, torturado em 1999 para que confessasse o assassinato do namorado de sua filha. Seu filho também foi abusado para que acusasse o pai. Laparra passou 12 anos na prisão apesar de não ter matado ninguém. Na sexta-feira o Governo organizou para ele um ato de desagravo.

"O normal é que nenhum agente seja processado", lamenta Anistia Internacional

Mas esses gestos, segundo os especialistas, não bastam para conter um fenômeno por traz do qual pulsa a impunidade. “Há um sistema penal que nem investiga nem sanciona, mas o mais desalentador é que faltam sistemas de controle na polícia, algo especialmente grave porque a tortura é cometida pela autoridade que tem de investigá-la”, afirma Ernesto López Portillo, presidente do Instituto para a Segurança e a Democracia.

Esses fatores geraram um buraco negro no qual, segundo Portillo, a maioria dos casos permanece escondida. E os casos que são divulgados passam por uma trajetória amarga. Yuly Baltazar Martínez, hondurenha de 34 anos, sabe disso muito bem. Seu marido, Ángel Colón, ativista de direitos humanos, tentou chegar aos EUA em busca de um trabalho que lhe permitisse custear o tratamento de seu primogênito, doente de câncer. Em Tijuana, contatou um coiote. Enquanto aguardava na casa do traficante, foi preso. Até aqui, uma história comum na fronteira norte. Mas a polícia, segundo a Anistia, deu um passo além e, em vez de deportá-lo, obrigou-o a confessar sob tortura que fazia parte do bando. E Colón, negro, imigrante e pobre, foi parar na cadeia.

Desde então passaram-se cinco anos. No entanto, muitas coisas aconteceram, algumas públicas, outras íntimas. Publicamente, Colón sustentou sua inocência contra tudo e contra todos, tanto que a Anistia o declarou prisioneiro de consciência e Honduras saiu em sua defesa. Em sua vida pessoal, Ángel, o filho doente, morreu sem ter o pai ao seu lado, e Yuly, a esposa, depois de cinco anos de sofrimento, não voltou a ver o rosto de seu marido preso até segunda-feira passada.

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