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A QUARTA PÁGINA

A doutrina do ressentimento

Putin defende a ideia de que a Rússia tem a responsabilidade de proteger todos os russos que estão no estrangeiro, e ele decide quem é russo e quem não é. Mas ‘proteger’ os russos na Ucrânia tem consequências fatais

Timothy Garton Ash
ENRIQUE FLORES

Às vezes, só as vezes, convém prestar atenção nas insuportáveis palavras dos malas nas reuniões importantes.

Em 1994, estava quase dormindo em um debate realizado em São Petersburgo, na Rússia, quando um homem robusto e de baixa estatura, com cara de rato, que parecia ser o braço direito do prefeito, começou a falar. Disse que a Rússia havia entregado de forma voluntária "imensos territórios" para as antigas repúblicas soviéticas, entre as zonas "que historicamente sempre pertenceram à Rússia". Se referia "não somente à Crimeia e ao norte do Cazaquistão, mas também, por exemplo, à área de Kaliningrado". A Rússia não podia abandonar à sua própria sorte estes "25 milhões de russos" que haviam passado a viver no estrangeiro. O mundo deveria respeitar os interesses do Estado russo "e do povo russo como grande nação".

Aquele homenzarrão irritante se chamava – como podem supor – Vladimir V. Putin, e sei exatamente o que disse em 1994 porque a organização, a Fundação Körber de Hamburgo, Alemanha, publicou a transcrição completa. O que eu traduzi como "povo" russo é, na transcrição alemã, volk. Putin tinha e continua tendo uma definição völkisch, ampla e radical, dos russos: agora fala do russkiy mir, literalmente, o "mundo russo". A transcrição também mostra que eu fiz uma pequena brincadeira sobre as consequências que a visão do desconhecido funcionário municipal da prefeitura poderia ter quando disse: "Se atribuirmos a nacionalidade britânica para todas as pessoas que falam inglês, teríamos um Estado um pouco maior do que a China".

Não podíamos adivinhar que, 20 anos mais tarde, aquele vice-prefeito de São Petersburgo, hoje czar sem coroa dos russos, iria apoderar-se da Crimeia à força, alimentar de maneira encoberta o caos e a violência no leste da Ucrânia e promover descaradamente sua atrasada visão völkisch como política de um Estado do século XXI. O Kremlin atual possui sua própria visão distorcida da doutrina humanitária desenvolvida pelo Ocidente e consagrada pela ONU sobre a "responsabilidade de proteger". A Rússia, insiste Putin, tem a responsabilidade de proteger os russos que estão no estrangeiro, e ele decide quem é russo e quem não é.

É verossímil pensar que um exército regular teria identificado no radar um avião de passageiros

Certamente, devemos evitar o que o filósofo Henri Bergson chamava de ilusões do determinismo retrospectivo. A história não é discutida em linha reta. Depois de sua ascensão ao poder supremo do Estado russo, que começou quando se converteu em primeiro ministro em 1999, Putin experimentou outros modelos de relações com o Ocidente e o resto do mundo. Durante alguns anos, tentou a modernização e a cooperação com o Ocidente. Celebrou a incorporação ao G-8, um dos incentivos que os Estados Unidos e a Europa ofereceram para ajudar a Rússia nas dificuldades inevitáveis de seu caminho pós-imperial. O presidente George W. Bush se equivocou quando disse que havia "olhado nos olhos" de Putin em 2001, mas seria pouco rigoroso chegar à conclusão de que em 2001 Putin já estivesse planejando secretamente recuperar a Crimeia e desestabilizar o leste da Ucrânia.

Ainda que os historiadores devam investigar estas possibilidades alternativas, é fascinante ver que os princípios fundamentais da doutrina do Estado protetor de Putin, baseada no ressentimento, já estavam presentes em 1994, apesar de ainda não contar com o reforço das doutrinas ideológicas de pensadores russos como Ivan Ilyin.

Houve um tempo no qual existia a doutrina Brejnev, que apelava para a "ajuda fraternal" para justificar ações como a invasão soviética da Checoslováquia em 1968. Mikhail S. Gorbachev a substituiu pela doutrina Sinatra – que cada um faça da sua maneira, como explicou o porta-voz do Ministério de Assuntos Externos, Gennadi I. Gerasimov – em suas relações com a Europa Oriental. Agora temos a doutrina Putin.

Os combatentes locais não teriam a tecnologia necessária para lançar semelhante ataque

Não resta nenhuma dúvida que estamos diante de uma ameaça não somente para os vizinhos da Rússia no leste da Europa e Ásia Central, mas para toda a ordem internacional criada desde 1945. Todos os países do mundo contam com homens e mulheres que vivem em outros Estados mas que os consideram, em certo sentido "sua gente". E se, como ocorreu no passado, as minorias chinesas dos países do sudeste asiático forem vítimas da discriminação e da ira popular, e a China (aonde, durante uma visita que fiz na primavera, ouvi frases de admiração sobre a atuação de Putin) decidir assumir sua responsabilidade de mãe pátria e exercer sua responsabilidade völkisch de proteger?

Para deixar claro porquê uma coisa assim é totalmente inaceitável e constitui uma grave ameaça contra a paz mundial, devemos começar a entrar em um acordo sobre os direitos legítimos e as responsabilidades de uma mãe pátria. Meu passaporte britânico contém a velha e ressoante fórmula de que o ministro de Estado de sua majestade britânica "solicita e exige" que as potências estrangeiras me deixem entrar "sem travas nem limites", e se eu me encontrar em algum momento com dificuldades, por exemplo, na Transnístria, esperaria (ainda que não necessariamente com muita confiança) que eu, de fato, exigiria. Mas falando sério, a Polônia expressou sua preocupação pela situação dos cidadãos de língua polaca na Lituânia. A Hungria deu passaporte e direito de voto nas eleições nacionais para cidadãos de países vizinhos que considera membros do povo húngaro. Em síntese, para identificar quem é ilegítimo, devemos explicar mais claramente quem é legítimo.

No momento em que escrevo estas linhas, as autoridades norte-americanas e ucranianas afirmam, com sólidos argumentos, que com toda a probabilidade foi um míssil antiaéreo disparado do território controlado pelos separatistas pró-russos o que derrubou o voo 17 da Malaysia Airlines, uma nova colheita de aflição nos campos ucranianos ensanguentados pela história. Ainda não ficou categoricamente estabelecido quem disparou. Mas Putin demonstra uma hipocrisia de dimensão orwelliana quando diz, como fez na sexta-feira, que "o Governo do território no qual ocorreu esta terrível tragédia é o responsável". É evidente que muitos dos que se identificam como russos no leste da Ucrânia sentem um amargo ressentimento, mas a violência de seus protestos se deve em grande parte ao relato mentiroso colocado no ar pela televisão russa, e a Rússia de Putin apoiou – para não empregar um termo mais forte – seus paramilitares, por exemplo, com a presença de membros ou ex-membros das forças especiais russas.

Não há dúvida de que estamos diante de uma ameaça contra toda a ordem internacional

Para fazer um juízo mais firme sobre as causas da tragédia é necessário esperar por mais provas, mas parece verossímil pensar que um Exército regular (ucraniano ou russo), normalmente, teria identificado a imagem de radar de um avião de passageiros que voava a 11.000 metros, e que um grupo composto somente por combatente locais (ainda que tivessem experiência militar) não teria a tecnologia nem a capacidade para lançar semelhante ataque sem ajuda externa. São precisamente as contradições e ambiguidades geradas pela versão étnica da "responsabilidade de proteger" que permitem possibilidades tão desastrosas. Putin debilita e põe em xeque a autoridade do Governo de um território soberano e então o culpa pelas consequências.

Consequentemente, se um vice-prefeito desconhecido começa a dizer coisas alarmantes em alguma reunião na qual estejam presentes, meu conselho é que prestem atenção. Os que falam e criticam desta maneira, na sua maioria, não costumam chegar rapidamente nos cargos mais altos. Mas, quando chegam, suas ideologias do ressentimento podem acabar transformadas em sangue.

Timothy Garton Ash é professor de Estudos Europeus na Universidade de Oxford e pesquisador titular na Hoover Institution. Seu último livro é Os fatos são subversivos: escritos políticos para uma década sem nome.

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