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Milhares de pessoas em toda a Espanha pedem um referendo sobre a Monarquia

Passeatas em 40 cidades espanholas exigem uma consulta depois da abdicação do Rei

Marcha a favor de um referendo sobre a Monarquia em Madri.
Marcha a favor de um referendo sobre a Monarquia em Madri.G. A. (getty)

Foram 850 metros a passo lento de cânticos e gritos contra a Monarquia, o rei Juan Carlos e alguns outros membros da família real, com bandeiras sobre os escândalos judiciais -  o genro do monarca Iñaki Urdangarin estava em várias - e outros episódios recentes que afetaram a Coroa nos últimos tempos. Acima de tudo, a favor de um referendo. A distância entre a Praça Cibeles e a Porta do Sol, no coração de Madrid, foi percorrida por várias gerações e muitas cores (a bandeira republicana estava em toda parte). Ao destino, chegaram cerca de 6.000 pessoas, segundo os cálculos do EL PAÍS, que fontes policiais rebaixaram à metade e os organizadores multiplicaram até 50.000. Na praça, avós e aposentados misturaram-se com jovens habituados aos protestos de 15-M (15 de maio de 2011), ao mar de cidadãos que defendem os serviços públicos e a pais e filhos.

Como Lorenzo Torrejón, que quase duas horas depois de deixar a sua casa em Esquivias, um município com 5.000 habitantes em Toledo a 45 quilômetros de Madrid, fumava um cigarro de quase 10 centímetros na fonte de Cibeles. Com a mão esquerda, movimentava o cigarro; e com a direita agarrava a haste de dois metros que termina em uma bandeira republicana. "Por que estou aqui? Porque não queremos o Rei, queremos que haja um referendo", exclama, entre tragadas. Este aposentado de 68 anos, militante do Partido Comunista há 40, saiu do seu povoado às cinco da tarde para, às sete, somar-se à manifestação no centro da capital. "Não creio que sirva para muito, porque o Partido Popular (PP) e o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) não querem uma mudança. Mas temos que continuar", insiste o homem, vestido com suspensórios e camisa vermelha, que conta que se alistou ao PC quando este ainda era clandestino. "Os componentes da célula local se encontravam, à noite, em uma zona conhecida como as pedreiras. Ali, no escuro, não conseguíamos ver os rostos. Era por segurança", explica Torrejón, rindo ao recordar como reconheceu a voz do pai em uma das reuniões.

"Esse regime é uma herança do Franquismo. Tem que haver uma consulta para podermos escolher. É o básico da democracia", afirma Ángel, vendedor de cupons de 59 anos, vizinho do madrilenho Extremadura. De família republicana, conta que seu irmão se exilou na França durante a ditadura, com 18 anos, por pertencer a um grupo político e distribuir panfletos. "O incrível neste processo é que o PSOE, um partido que se diz republicano, apoia a monarquia", acrescenta.

É precisamente sobre isso que Paula Hirschhorn está falando, alguns metros à frente. "Falam que são de esquerda, mas são mais do mesmo", assegura esta madrilenha de 18 anos, estudante da Belas Artes. "Deixa bastante a desejar que o partido que se uniu com o PP seja contra o referendo", continua a garota, que sentencia: "Acho que, ainda que digam que há democracia neste país, o fato de eles não quererem convocar um referendo mostra que não há".

A defesa é pelo direito de decidir em um referendo o modelo de chefia de Estado. Os manifestantes preferem a República. Informaram isso com cânticos de todos os tipos, inclusive futebolísticos. A estrofe, "Referendo, oe, referendo, oe" fez fortuna durante parte do evento.

Na véspera das passeatas - além de Madrid, foram programadas para outras 40 cidades espanholas - oito forças políticas firmaram na última quinta-feira uma declaração que pede a abertura de um processo constituinte e uma segunda transição. Um grupo liderado pela Izquierda Unida e que agrupa diversos partidos de esquerda, ambientalistas, federalistas e nacionalistas, uma iniciativa desvinculada ao PSOE.

O Podemos, a surpresa das últimas eleições europeias, não assinou o documento porque, segundo Pablo Iglesias, o rosto público da organização, nenhuma sigla deve se apropriar das reivindicações cidadãs, mas apoia a filosofia e pede para que escutem o que "as praças estão falando". À noite, Iglesias não gritou no Sol porque, segundo fontes de sua organização, estava fora de Madrid "por razões pessoais". Outros representantes do movimento compareceram.

O coordenador geral da Esquerda Unida, Cayo Lara, protestou contra a Monarquia, e defendeu para a imprensa que a abdicação foi uma consequência direta dos resultados das eleições europeias. "Do contrário, não consigo entender tanta improvisação e que nem sequer estava preparado o processo parlamentar", assegurou.

O Podemos, a surpresa das últimas eleições europeias, não assinou o documento porque, segundo seu líder, nenhuma sigla deve se apropriar das reivindicações cidadãs

O documento afirma que a sociedade de 2014 não é a mesma que aprovou o modelo de Estado em 1978 e que 70% dos cidadãos que estão vivos não puderam votar na Constituição de 1978. O manifesto dos partidos conclui que "a grave crise econômica, social, ambiental e política pela qual vive a Espanha resultou na abdicação do Monarca e na tentativa acelerada de impor um novo Rei, sem que a vontade do povo fosse levada em conta".

O grupo da Izquierda Plural, que agrupa vários partidos de esquerda, ecologistas, federalistas e nacionalistas, convidou o resto das formações políticas a se opor, na próxima quarta-feira, a este projeto da lei de Abdicação que será debatido no Congresso. Sobre o documento, a futura normativa conta o apoio de 85% do Pleno, se todos os deputados obedecerem as regras de votação, o que, por exemplo, o PSOE vai exigir dos seus membros.

Com os últimos raios de sol, os manifestantes finalizaram em uma gigantesca assembleia a estratégia, à parte das instituições, para exigir o direito de decidir.

José Verdesoto, aposentado de 79 anos depois de uma vida inteira trabalhando com azulejos e mármores, exilado na Suíça, segue com sua camisa de lã tricolor. Uma das muitas que sua esposa teceu para ele ir às manifestações. "Já o chamam de Felipe VI e ele ainda não o é. Eu não quero que seja. Seguirá a doutrina do seu pai e este sistema que engorda os bancos e nos torna mais magros. Não dá mais."

Já o chamam de Felipe VI e ele ainda não o é. Eu não quero que seja. Seguirá a doutrina do seu pai e este sistema que engorda os bancos e nos torna mais magros. Não dá mais José Verdesoto, aposentado de 79 anos

Em Valência, sob o lema Pela República, pelos processos constituintes, pelo direito a decidir e por um referendo, alguns manifestantes mostraram uma bandeira com a imagem do príncipe Felipe de cabeça para baixo. Houve slogans como "A Espanha amanhã será republicana" ou "Os Bourbouns às eleições".

Em Barcelona, apenas algumas centenas reuniram-se a favor do referendo, enquanto milhares de pessoas saíram às ruas de Pamplona, onde as bandeiras republicanas misturaram-se com ikurriñas (bandeiras do País Basco) e bandeiras de Navarra. Em Santander, mais milhares de pessoas manifestaram-se para que os cidadãos "tomem as rédeas dos seus destinos" e possam votar para manter a monarquia, "herdada de Franco", ou "construir" uma República. Milhares de pessoas também saíram às ruas nas três capitais bascas para pedir uma terceira república e a favor do processo constituinte.

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