A Argentina, uma potência no Festival de Cannes
Com quatro filmes no certame francês, o governo e a imprensa de Buenos Aires comemoram o bom momento de seu cinema, apesar do ceticismo de vários realizadores
Há apenas dois anos o diretor do festival de Cannes, Thierry Frémaux, falava isso do cinema argentino: "Esperávamos mais, depois de um grande início. Mas nunca cresceu. Os cineastas argentinos se suicidaram. [O produtor e diretor] Pablo Trapero é o único que aposta em filmes diferentes, sem se importar muito com o sucesso nas bilheterias.”
Mas, apesar do lamento, esta semana quatro filmes argentinos estão concorrendo à 67ª edição do festival de Cannes. E um deles, Relatos salvajes, terceiro longa-metragem de Damián Szifrón, disputará a Palma de Ouro na seleção oficial junto a 18 obras de autores tão consagrados quanto o canadense David Cronenberg, o francês Jean-Luc Godard ou os britânicos Ken Loach e Mike Leigh.
Do resto da América Latina só a Colômbia está representada com um filme, Gente de bien, do diretor Franco Lolli, que concorre na seleção paralela Semana da Crítica, dedicada a novos diretores.
A Argentina tem quatro longa-metragens dos 60 que serão projetados, escolhidos entre 1.700. Concorre em quase todas as seções do festival e conta com três jurados em duas seções. A presidenta da Argentina, Cristina Fernández, se despediu dos cineastas antes da viagem a Cannes e disse: "Acho que é a primeira vez [que quatro filmes argentinos são selecionados]. Somos o governo na primeira vez." Na quarta-feira dois jornais que se encontram nos dois lados extremos ideologicamente comemoravam O grande ano argentino (Clarín) e Palmas para a presença argentina (Página 12).
O cinema argentino ressuscitou em apenas dois anos ou nunca tinha se suicidado? Tornou-se mais comercial ou mais independente? O empresário argentino Hugo Sigman, produtor do selecionado Relatos salvajes, junto com os espanhóis Agustín e Pedro Almodovar, afirma na revista Haciendo cine: "Os filmes argentinos que participam têm pouco a ver um com o outro. Não existe um protótipo. Frémaux escolhe qualidade e, no geral, os menos comerciais costumam ser os de maior qualidade. Mas acho que o que se procura é qualidade, mas se forem comerciais, melhor ainda.”
Hernán Guerschuny, diretor da revista Haciendo cine e diretor do filme El Crítico, que estreou este ano na Argentina, acha que são os festivais europeus que se tornaram mais comerciais. "Antes contavam com mais mecenas, agora estão obrigados a pensar no negócio. Precisam atrair anunciantes. E conseguem isso convocando grandes figuras como Ricardo Darín, que é o protagonista deRelatos salvajes; Viggo Mortensen, que atua e produz Jauja [do argentino Lisandro Alonso] ou Gael García Bernal, estrela em El ardor [de Pablo Fendrik]”.
Os filmes selecionados
Relatos salvajes:concorre pela Palma de Ouro na seleção oficial. É dirigido por Damián Szifrón e conta com a atuação de Ricardo Darín e Leonardo Sbaraglia, entre outros.
Jauja. Dirigida por Lisandro Alonso. Protagonizada e produzida por Viggo Mortensen. Participa na seção Um Certo Olhar
Refugiado, do diretor Diego Lerman. Na Quinzena de Diretores.
Ardor, de Pablo Fendrik. Na seleção oficial fora do concurso.
Guerschuny acredita que existe um fator decisivo para explicar esta grande presença em Cannes. Chama-se Ventana Sur e é o principal mercado latino-americano de cinema. É realizado em Buenos Aires, organizado no Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA), dependente do governo argentino, junto com o Marché Du Films do Festival de Cannes. "Aí vêm programadores e distribuidores de todas as partes do mundo e assistem a filmes que antes não viam."
Se ficarmos somente com as cifras, é indiscutível que o setor vive um excelente momento. Marcelo Stiletano, especialista em cinema de La Nación e Radio Continental, lembra que houve um recorde histórico de venda de entradas no ano passado, embora a maioria dos espectadores tenha se concentrado em poucos títulos. Mas a seleção de Cannes reflete que o cinema argentino é melhor agora do que há cinco anos? "Há maior diversidade", aponta Guerschuny. "Mas não acho que a seleção de Cannes signifique que nosso cinema esteja melhor que há três ou quatro anos."
O cineasta Mariano Llinás (Historias extraordinarias) mostra-se muito cético: "O que acontece é que Cannes é o mais famoso entre os festivais (nem o mais prestigiado, nem o melhor) e isso faz com que pessoas que não se interessam nem um pouco por cinema durante o ano inteiro tenham a oportunidade de falar algo a respeito e ocupar seu tempo comentando sobre "um grande momento para o cinema argentino" e besteiras assim. Nós, que realmente nos ocupamos do cinema, sabemos que esses grandes anúncios são fanfarronices superficiais feitas para funcionários públicos e que nosso trabalho está em outro lugar e em outro momento, não depende desses circos. Tenho certeza de que Damián Szifrón e Lisandro Alonso pensam a mesma coisa. Isso: uma simples astúcia jornalística, uma simples manobra nacionalista. Nada mais. Fraques para os que vão, trabalho para os que ficam."
O poeta e escritor Fabián Casas é o roteirista de Jauja, selecionado para concorrer na seção Um certo olhar. Na terça-feira, pouco antes de viajar a Cannes, também expressava seu ceticismo em relação à importância do concurso: "Na Argentina, há muito cinema excelente que não participa dos festivais. Não me interessa a retórica dos festivais. Nem a dos prêmios. Não gosto dos dois filmes argentinos que ganharam o Oscar. Prefiro o cinema como um poema, o cinema de [Andréi] Tarkovski, por exemplo. E é isso que faz Lisandro Alonso, um cinema bastante radical”.
Mesmo assim, até Fabián Casas admite que a projeção gerada por Cannes pode servir muito bem a esse cinema radical. E, portanto, ao argentino.
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