_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

A Copa quebrada

O Brasil já perdeu e já ganhou o Mundial

Juan Arias

O Brasil ao mesmo tempo já perdeu e já ganhou a Copa, o que não é nenhuma tragédia. Ganhou-a, fora dos estádios, porque o país amadureceu e deseja algo mais do que futebol. Quer uma vida melhor e mais digna, com a Copa ou sem ela.

Perdeu-a porque já não é segredo que o país do futebol chegou tarde, com estádios, além de milionários, remendados na última hora, com possível esbanjamento de dinheiro público, quando a promessa era de que os gastos seriam bancados por empresas privadas. A população, além disso, não obteve vantagens das prometidas novas infraestruturas, sobretudo as de transportes, levadas a cabo nas cidades-sede das competições. E nos aeroportos ainda há obras que deverão ser ocultadas dos turistas.

E como se fosse pouco, observa agudamente Vinicius Torres Freire em sua coluna do jornal Folha de S.Paulo, a Copa, que estava destinada a ser uma ocasião de festa, “teve de ser tratada como operação literalmente de guerra”, já que se anuncia o uso do Exército nas ruas, por temor de protestos violentos, e, segundo alguns, poderá haver uma espécie de “estado de exceção branco” durante o mês da competição. Pode a FIFA governar um país, mesmo que seja só por algumas semanas?

O Brasil estava destinado a fazer a melhor Copa da história, e falta pouco para que acabe sendo uma das mais mal organizadas e mais criticadas até pelos anfitriões. Perdeu-se a Copa antes de disputá-la, algo que, conforme escutei em um ônibus onde viajava gente de classe média, envergonha os brasileiros. Senti no ar o eco da volta do complexo de vira-latas que durante tanto tempo assolou este país grande, rico e de gente invejável por sua capacidade de acolhimento e resistência à dor. A Copa, de certa forma, já foi perdida.

Mas o Brasil também já ganhou a Copa, haja ou não manifestações nas ruas contra o torneio. Ganhou-a por uma razão muito simples e até paradoxal: porque a maioria dos brasileiros revelou que, se pudessem decidir, não votaria para que a Copa fosse realizada aqui, 64 anos depois do Mundial de 1950, tristemente famoso pelo gol com o qual o Uruguai ganhou do Brasil no Maracanã recém-estreado.

O fato de os brasileiros –sem renunciarem a sua paixão pela bola, que levam impressa em seu DNA, em seu sangue e na sua cultura – já não se sentirem apenas filhos do futebol e sonharem mais alto significa mais do que ganhar a Copa.

É um país que cresceu, amadureceu, desenvolveu-se economicamente desde aquele fatídico 1950 e tomou consciência de que não deve ser amado e admirado no mundo só porque sabe chutar uma bola como poucos, mas também porque é capaz de exigir o que lhe pertence e o que merece.

Ainda há famílias pobres das favelas que sonham com a possibilidade de que algum de seus filhos possa virar um novo craque que tire seus parentes dos apuros econômicos. A maioria, entretanto, tem outros sonhos para seus filhos, longe dos gramados. Escutei inclusive de pessoas com origens modestas que há duas coisas que elas já não desejariam para seus filhos: que fossem policiais ou jogadores de futebol. É uma mudança de paradigma que revela, mais do que muitos levantamentos científicos, como este país mudou.

As autoridades governamentais estão a cada dia mais nervosas com as possíveis manifestações. Os políticos também temem que o Brasil possa, de novo, na segunda Copa com uma final no Maracanã, perder a taça.

Esse medo indica que eles não entenderam que, para este país, já não é essa a maior preocupação que se vive nas ruas, onde um grupo de pescadores aos quais perguntei se estavam nervosos com a Copa me respondeu: “Aqui, ‘seu’ jornalista, desta vez não há clima de Copa. Estamos preocupados com outras coisas.”

Claro que desta vez, se o Brasil voltar a perder a Copa, e outra vez no Maracanã, não veremos ninguém se atirar de uma ponte em desespero. O Brasil sofre hoje com outras coisas, como a inflação disparada e a precariedade dos serviços públicos. Preocupa a barbárie dos linchamentos, que revelam também uma falta de credibilidade em relação às autoridades do Estado, incapazes de proteger a população.

Os brasileiros desfrutam hoje de outras coisas além do futebol, como o desejo de se superar, de ganhar o tempo perdido reciclando-se profissionalmente para poder dar um salto social e, desse modo, estimular os seus filhos a não perpetuarem a fatalidade da pobreza material e cultural de seus pais e avós.

Hoje, quando são feitas pesquisas sobre tudo o que acontece e está por acontecer, até sobre as minissaias que provocam os homens, seria interessante que perguntassem aos brasileiros quais são seus sonhos com os olhos abertos, se é ganhar a Copa ou poder ter uma vida sem sofrimentos econômicos, com um Governo que lhes devolva em serviços decentes o sacrifício de tantos impostos, um futuro com menos violência, com menos desigualdades insultantes. Ou a possibilidade de poder desfrutar de algumas das coisas materiais e espirituais que, até agora, eles só viram um punhado de privilegiados aproveitar.

Em todo o mundo, os ditadores, de direita e de esquerda, usaram o esporte, e sobretudo o futebol, para embriagar as pessoas e distraí-las dos seus verdadeiros problemas e anseios.

Hoje, entretanto, os brasileiros não optariam por ganhar a Copa à custa de continuar sofrendo nas garras da pobreza e da exclusão, que durante tantos anos os atormentaram. Preferem perdê-la se isso significar poder desfrutar de uma maior democracia.

E se ganhar? Então ganharia duas vezes, mas a Copa não seria a razão principal da sua felicidade. Seria só uma boa sobremesa depois do prato principal. E esse prato é um Brasil que já não aceitaria voltar a perder sua democracia para afundar-se de novo no túnel da ditadura; um país que, apesar de estar vivendo um momento difícil em sua economia, continua sendo um dos países mais ricos do planeta e que aspira a ganhar muitas outras batalhas. Se fosse necessário, voltaria a sair à rua para se fazer escutar.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_