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As mamografias não são perfeitas, mas salvam vidas

As dúvidas sobre os exames preventivos se estendem ao câncer de mama Um novo estudo alimenta o debate Os cientistas defendem as provas

A área da saúde fixou um calendário comum para as mamografias
A área da saúde fixou um calendário comum para as mamografiasD. F. (GETTY IMAGES)

Nem todos os métodos de detecção precoce do câncer gozam do mesmo prestígio entre a comunidade médica. Entre os mais controversos estão os relacionados com os tumores de pulmão ou de próstata. Nestes casos, o indicador que se considera o de referência (o antígeno prostático específico, PSA) também aparece em concentrações elevadas em alterações benignas do órgão, o que dá lugar a muitos 'falsos positivos'.

Mas inclusive em procedimentos que contam com amplo respaldo científico, que possibilitaram o desenvolvimento de programas massivos de diagnóstico, como no caso das mamografias, existem vozes que colocam em questão sua utilidade e alimentam o debate sobre a necessidade de reavaliá-los. A discussão não é nova, nem sequer no caso do câncer de mama, ainda que existam sólidas revisões que destacam o valor das mamografias, como aponta Josep Alfons Espinàs, coordenador do departamento de prevenção do câncer do Plano Diretor de Oncologia da Catalunha. Uma delas, que faz referência aos programas de prevenção europeus, confirmou em 2012 o benefício desses planos em termos de mortes evitadas. O porta-voz da Sociedade Espanhola de Oncologia Médica (SEOM), Antonio Llombart, também está convencido do efeito benéfico das mamografias. Ainda que "os dados comecem a sugerir que os exames preventivos, que na Espanha são feitos de forma distinta  dos EUA ou Canadá, estão começando a perder seu impacto com respeito ao percentual de sobrevivência (das pacientes)", sustenta.

87% são curados

Incidência. O câncer de mama é o quarto em incidência total na Espanha, com 25.215 casos diagnosticados em 2012, segundos os dados mais recentes da Sociedade Espanhola de Oncologia Médica (SEOM). Acima estão o colorretal (32.240 casos novos), o de próstata (27.853) e o de pulmão (26.715). Entre as mulheres, é o primeiro, mas teme-se que o de pulmão o supere logo, devido ao aumento do tabagismo.

Mortalidade. É o terceiro em mortes, com 6.075 em 2012.

Prognóstico. Em relação ao câncer, a sobrevivência de cinco anos se considera o mais próximo possível da cura. O câncer de mama tem uma taxa de mais de 87% de cura. Passados 10 anos, 85% das atingidas vive, afirma a SEOM.

Exames preventivos. A mamografia para a detenção precoce do câncer de mama é recomendada na Espanha para todas as mulheres entre 50 e 69 anos. O indicado é que o exame seja realizado - salvo fatores de risco, como antecedentes familiares - a cada dois anos. Mas este é o período mínimo acordado entre as comunidades autônomas e o Ministério da Saúde. Algumas localidades (como Navarra ou Valência, por exemplo) oferecem o exame a partir dos 45 ou 46 anos.

Outros exames. Além dos exames de imagem, a autoexploração de mama é uma opção na qual os especialistas insistem.

Tratamentos. O câncer de mama é líder no que se denomina medicina personalizada. O Herceptin, para os tumores HER2+ (com mutação deste gene), foi o primeiro dos medicamentos desta nova família. Conseguiu, por exemplo, a cura para este subgrupo específico do 97%.

Diante desta opinião majoritária, surgem estudos discrepantes. O último é especialmente relevante. Trata-se de um trabalho publicado no British Medical Journal (BMJ), que põe em dúvida que o diagnóstico precoce entre os 40 e 59 anos, através de mamografias, sirva para prevenir mortes. O resultado deste estudo, que acompanhou quase 90.000 mulheres canadenses ao longo de 25 anos, aponta que os exames com equipamentos radiológicos não reduzem a mortalidade por câncer de mama se comparados com a exploração física por parte de profissionais de saúde ou da própria pessoa, nos países que contam com terapias avançadas de livre acesso.

Não é só isso. O estudo alerta para o número elevado de casos de sobrediagnósticos (identificação e tratamento de doenças que não seriam derivadas de tumores malignos) que são produzidos em decorrência das mamografias, até o ponto de 22% dos supostos tumores invasivos detectados pelos exames não serem o que se achava que fossem.

Participaram do estudo 89.835 mulheres entre 40 e 59 anos, divididas aleatoriamente em dois grupos, submetendo-se a controles durante cinco anos na década de 80. Praticamente metade delas (44.925) foram submetidas a revisões anuais, com mamografia e explorações físicas; as do outro grupo (44.910) só foram examinadas com provas físicas (consistência das mamas, possível presença de gânglios linfáticos inflamados na axila, aspecto da pele e do mamilo).

Ao final dos 25 anos, os resultados observados são praticamente idênticos nos dois casos. No primeiro grupo, entre as mulheres submetidas a mamografias, houve 3.250 diagnósticos de tumores de mama e 500 mortes. No outro, se identificaram 3.133 pacientes com a doença, das quais 505 morreram.

Os autores da pesquisa, da Escola de Saúde Pública Dalla Lana, da Universidade de Toronto, acreditam que, a partir dos dados obtidos, o valor da mamografia na prevenção do câncer "deve ser reavaliado". Se o resultado final nos dois casos é o mesmo em termos de sobrevivência, não teria valor poder detectar tumores com os equipamentos atuais quando são muito pequenos e não possíveis de serem identificados com uma exploração física.

O BMJ publica também em sua edição de terça-feira um artigo de opinião com o significativo título de "Demasiadas mamografias". O texto destaca que o estudo é especialmente relevante porque compreende a época de desenvolvimento de novas drogas e estratégias como os tratamentos auxiliares - aqueles que são terapias complementares à medicação principal -, como o tamoxifeno, que ajuda a combater a metástase. Por isso, sustenta a autora deste texto, a pesquisadora Mette Kalager, do Hospital Telemark, da Noruega, o trabalho mostra a situação atual com maior precisão que estudos prévios. E encoraja a tese, apoiada por outros dois trabalhos recentes, de que seria o novo tratamento - terapias personalizadas ajustadas ao perfil genético das pacientes - o principal responsável pela redução das taxas de mortalidade vinculadas ao câncer de mama nos últimos anos, mais do que as mamografias.

A comunidade médica debate se há muitos ‘falsos positivos’

O trabalho dos pesquisadores da Universidade de Toronto já indica isso quando especifica que a mortalidade observada nos dois grupos de mulheres analisadas é similar "quando a terapia auxiliar para o câncer de mama é de livre acesso" no sistema de saúde. Por que? Esta medicação permite combater melhor as possíveis recorrentes e a combater células cancerígenas circulantes que se multiplicam à medida que os tumores ganham tamanho. Ou seja, combate este risco, que se dá em maior medida entre as mulheres com tumores maiores, o que hoje se previne com as mamografias, que permitem identificar os processos neoplásicos em etapas iniciais.

No entanto, o estudo apresenta vários problemas, de acordo com Josep Alfons Espinàs. Compara as mamografias com as explorações físicas. Mas muitas mulheres não se autoexaminam ou não vão às consultas onde se pode submeter a um exame deste tipo com uma enfermeira especializada. Qual seria o resultado de comparar a utilidade das mamografias contra a ausência total de explorações? Esta pergunta não é respondida.

Por outro lado, ele salienta que o trabalho selecionou mulheres entre 40 e 59 anos, e que existe um bom contingente de pessoas da faixa mais jovem, abaixo de 50 anos. “O efeito dos exames preventivos, no entanto, é mais benéfico em mulheres mais velhas, nas quais ocorrem mais casos positivos”, comenta. “Existe uma clara relação entre casos positivos nas explorações com mamografias e uma maior idade das pacientes, por exemplo, a partir dos 60 anos [que ficaram de fora do trabalho canadense], por isso é provável que o benefício esperado com os exames preventivos teria sido maior se tivesse sido incluída uma população mais idosa.”

Há quem defenda que a mortalidade cai sobretudo por causa dos tratamentos

À margem dessas questões, o oncologista catalão ressalta que o período no qual as 90.000 mulheres foram submetidas aos diversos exames exploratórios (físicos no caso de umas, mamografias, no de outras) limitou-se a cinco anos. Passado esse tempo, muitas das mulheres que faziam a autoexploração podem ter se submetido a controles regulares com mamógrafos – “O que não é absolutamente descartável, devido à implantação do programa canadense de exames preventivos”, diz Espinàs. Isso “teria um efeito que diluiria o resultado ao longo dos anos”, aponta.

O pesquisador catalão acrescenta um reparo a mais ao trabalho canadense: expectativa de vida não é a mesma coisa que qualidade de vida. O artigo destaca que as taxas de mortalidade são similares, mas não fala da agressividade dos tratamentos recebidos pelas pacientes em cada um dos grupos envolvidos na comparação. Para que o tumor possa ser detectado com os dedos, ele deve ter um tamanho suficientemente grande. “Se os tumores forem menores e identificados em estágios mais prematuros, o tratamento é menos agressivo. Possivelmente pode bastar apenas a cirurgia”, destaca ele. E, consequentemente, tanto os efeitos secundários como as potenciais sequelas são menores.

“A mamografia permite diagnosticar pacientes com lesões não evidentes; detectar tumores em estágios mais precoces melhora a sobrevivência”, insiste Agustí Barnadas, vice-presidente do Grupo Espanhol de Pesquisa do Câncer de Mama (Geicam, na sigla em castelhano).

A mamografia permite fazer um diagnóstico mais preciso

Mas existem, de fato, estudos que avalizam a tese dos pesquisadores canadenses. É o caso daquele que foi publicado também na BMJ, em agosto de 2011, com dados da Irlanda, Bélgica, Holanda, Reino Unido e Suécia, mostrando que os programas de exames preventivos do câncer de mama tiveram pouca relação com a queda da mortalidade na Europa, frente a outras variáveis como a melhora nos tratamentos e a maior acessibilidade aos sistemas de saúde.

Por outro lado, também já foram publicados estudos no sentido contrário. Como o elaborado por um pesquisador do Centro Médico da Universidade Erasmo, em Roterdã (Holanda), segundo o qual houve 30% de redução na mortalidade graças à implantação dos programas de diagnóstico em massa. Além disso, esse estudo salientava que, entre os diversos programas de exames preventivos, o de mama era o mais eficaz.

Diante da disparidade entre os trabalhos, Espinàs cita revisões que avaliam conjuntamente os dados dos diferentes estudos, de forma a compará-los e extrair conclusões. “Os mais relevantes, tanto os britânicos quanto os canadenses e norte-americanos, concluíram que as mamografias eram benéficas para as pacientes”.

Neves Ascunce, chefa do programa de detecção precoce do câncer em Navarra, cita um artigo publicado em 2012 na The Journal of Medical Screning, do qual ela participou como membro da Rede Europeia de Exames Preventivos (Euroscreen Working Group).

Os resultados indicam que, a cada 1.000 mulheres entre 50 e 69 anos – e não até 59, como no trabalho canadense – submetidas a mamografias bienais, 71 tumores são diagnosticados. Das 30 mortes previsíveis, 7 a 9 são evitadas graças a esses programas. O estudo revela que a redução da mortalidade se situa entre 25% e 31% entre as mulheres convidadas a participarem do programa (nem todas comparecem às consultas de retorno), e de 38% a 48% das que efetivamente se submetem aos exames (há mulheres que sentem que têm um risco maior, seja porque notaram algo no seio ou porque têm uma motivação maior para comparecerem, e por isso a taxa é superior).

O trabalho admite e dimensiona o sobrediagnóstico, ou seja, o diagnóstico de um processo que nunca viria a provocar sintomas. Em cada 1.000 exames, ocorrem quatro casos que não seriam notados se a mulher não tivesse aderido aos programas de exames preventivos, segundo a revisão europeia. “E o problema não é o sobrediagnóstico, e sim os tratamentos posteriores em lesões que não teriam efeitos clínicos”, acrescenta. “Mas não há nenhum elemento que diferencie os tumores que evoluirão dos que não o farão”, comenta Ascunce. E, na dúvida, o protocolo consiste em atuar como se fossem processos neoplásicos.

Embora o estudo canadense fale em 22% de sobrediagnósticos, e o editorial da BMJ sugira inclusive que eles podem alcançar mais do que o dobro dessa taxa, a chefa do programa navarro minimiza esses números. “A estimativa mais plausível é de 6,5%”, comenta. “Fica em 10%, ou menos”, comenta Espinàs.

A isso devem somar-se os falsos positivos, que ocorrem quando o resultado não é conclusivo, e é necessário repetir os exames para ter certeza. A ansiedade e a tensão da paciente nesses casos, até que se descarte o problema – normalmente com outro exame ou uma ecografia, pois é muito raro o recurso à biópsia –, junto com os tratamentos desnecessários derivados do sobrediagnóstico, são os principais inconvenientes causados pelos exames preventivos.

“É evidente que há riscos”, admite Ascunce, “mas não faz sentido nem maximizar os benefícios das mamografias, como se fez há anos, nem agora fazer o mesmo com os efeitos adversos”.

Frente a isso, os especialistas propõe melhorar os programas tanto com o aperfeiçoamento no tratamento das imagens – o que se está conseguindo com a digitalização – como com o rigor na interpretação na leitura radiológica. Também citam o desenvolvimento de marcadores tumorais que permitam distinguir entre as lesões patológicas e as que não serão malignas.

Há outro aspecto a ser considerado em favor das mamografias, segundo o porta-voz da SEOM. “Elas têm um valor que vai além do clínico, que é o social”. “Tem feito com que as mulheres se conscientizem”, diz. Isto faz, por exemplo, que tumores como o inflamatório “tenham praticamente desaparecido”.

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