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'Liberté, égalité, infidélité'

A tradição libertina e o valorizado conceito de privacidade marcou a relação entre os presidentes franceses, suas amantes e o povo

Diana de Gales em 1994 junto ao ex-presidente francês, Valery Giscard, no teatro do Palácio de Versalhes.
Diana de Gales em 1994 junto ao ex-presidente francês, Valery Giscard, no teatro do Palácio de Versalhes.Reuters

Os franceses, que têm fama de protestar por tudo, aceitam sem maiores problemas que exista uma relação natural e afrodisíaca entre poder e sexo. E acreditam que se o sexo vem com um pouco de libertinagem, perigo e mistério, tant mieux! Longe do puritanismo anglo-saxão, da falsidade espanhola e do falso moralismo italiano, muitos presidentes franceses foram grandes tombeurs de femmes (sedutores) desde que a I República foi estabelecida, em 1792.

Esse costume libertino, que muitos julgam saudável, moderno e liberal, e outros imperial e machista, foi silenciado conscientemente algumas vezes e com meios ilícitos, e outras foi executado torpemente sem a necessária discrição. Mas sempre foi tolerado pelo povo e chegou intacto até hoje.

O impopular Fraçois Hollande foi capturado por uma revista traindo a ainda menos popular primeira dama com uma atriz 18 anos mais jovem que ele. E pudemos ver que a atitude de tolerância sobre a vida privada dos governantes conta com numerosos e apaixonados defensores na França.

No enterro de Mitterand, em 1996, coincidiram sua esposa Danielle com Anne Pingeot.
No enterro de Mitterand, em 1996, coincidiram sua esposa Danielle com Anne Pingeot.Michel Gangne (AFP)

Dominique Wolton, investigador emérito do Centro Nacional de Investigações Científicas (CNRS) e autor do livro Indisciplinado. A Comunicação, os homens e a política (Odile Jacob, 2012), é um deles. “É a vida, amigo, a história do mundo!”, comenta. “Acontece em todos os lugares, mas talvez na França se tolera mais porque somos mais libertinos, mais laicos e um pouco menos hipócritas que outros. A tradição de respeito à vida privada é assim, aqui todo mundo defende a liberdade individual. A transparência anglo-saxã é o pior, uma insuportável hipocrisia aguda. Nós separamos a vida privada da vida pública e isso é uma prova de liberdade. O presidente engana sua mulher com uma amante? Muito bem! Todo mundo faz isso. Se isso implica em que pode enganar também os franceses? Que besteira! Você enganaria seus leitores se tivesse uma amante?

Na França se tolera mais porque somos mais libertinos, mais laicos e um pouco menos hipócritas que outros.

Esclarecido o princípio filosófico de alto nível, vamos ver o que a micro-história agitada, íntima e sentimental do Elíseu tem a dizer.

O repasso começa pelo imperador e presidente-príncipe, Luis Napoleão Bonaparte, Napoleão III. Foi um fornicador implacável, uma espécie de Dominique Strauss-Kahn com coroa. Chegou solteiro ao Elíseu, como Hollande, mas em 1853 se casou com a beleza de Eugenia de Montijo, de Granada, Espanha, o que não lhe impediu de ter amantes sem risco algum. A lista inclui a Miss Harriet Howard, que financiou sua campanha presidencial em 1848; a Pascale Corbière, babá de seus filhos, e a Virginia Oldoini, condessa de Castiglione e célebre cortesã italiana. Mas para não ser observado pelos seus funcionários - a moto e o capacete ainda não tinham sido inventados-, Napoleão III mandou construir um caminho secreto que ia da sacristia do Elíseu até um hotel próximo, onde fazia suas travessuras com a "deliciosa", dizem as crônicas, Louise de Mercy Argenteau.

Félix Faure ficou conhecido como o Presidente Sol. Pouco interessado pela política, entrou para a história por sua imbatível aparição: trajes finos, casaco bordado, corpo de esportista, carruagem de seis cavalos acompanhada de pelotões de soldados armados. Sua esposa, Berthe, era obrigada a andar a 20 passos atrás dele. Em 16 de fevereiro de 1899, Faure morreu feliz no salão azul do Elíseu, agarrado ao espartilho da mundana Marguerite Steinheil. Os jornais e chansonniers fizeram algumas piadas. A melhor, de Clemenceau: "Quis viver como César e morreu como Pompeu (Pompée, na gíria, é sexo oral)". A dama ganhou o apelido de pompe fúnebre.

Gaston Doumergue também chegou solteiro ao cargo e também se casou, aos 68 anos, em 1931, quando faltavam 12 dias para o final de seu mandato. Até mesmo Sarkozy, o primeiro presidente realmente republicano que abraçou o sacramento que Hollande considera maldição. A rica viúva Jeanne Marie Josephine Gaussal, amor de infância, foi a escolhida. A imprensa não publicou uma linha sobre o evento: a vida doméstica dos presidentes era coisa deles. Mas o desejo de privacidade de Doumerge foi em vão. Ao sair, o pessoal do Elíseu esperava para dar-lhes flores. Surpreso, Gastounet perguntou como souberam. "Pela embaixada da Inglaterra", responderam. Como agora, os britânicos estavam mais interessados nas intimidades francesas que os franceses.

A atitude de tolerância sobre a vida privada dos governantes conta com numerosos e apaixonados defensores na França

Valéry Giscard-dÉstaing, grande amante das amantes e dos diamantes - de Bokassa - acabou com a aura de inocência dos chefes de Estado. Em setembro de 1974, o elegante VGD sofreu um inoportuno acidente de carro enquanto voltava de uma caça noturna, já pela manhã. Polícia, bombeiros e médicos foram enviados ao lugar da batida e encontraram o presidente visivelmente embriagado a bordo de um Ferrari emprestado por Roger Vadim, e em companhia da bela atriz, argelina de nascimento, Marlenè Jobert - ainda que isso não tenha sido confirmado jamais -. Giscard entrou com a caminhonete em um carreta de leite que começava sua jornada e este, furioso, lhe deu um tapa na cara. Obviamente a imprensa não violou o pacto de silêncio e não exploraram a privada e exemplar aventura. Em 2009, o acadêmico Giscard publicou uma saborosa novela, La Princesse et le Président, que narra o idílio entre um acadêmico e presidente francês... e Lady Diana Spencer.

Em 1981 chegou a vez do socialista François Mitterrand, e a revista de extrema direita Minute comemorou, publicando que tinha uma filha secreta de sete anos, Mazarine, com uma amante secreta e estável, Anne Pingeot. Os meios passaram 13 anos sem retomar a história, talvez porque Mitterrand ordenou grampear uma centena de telefones para evitá-lo. Em 1994, Paris Match publicou uma foto do presidente conhecido como A Esfinge saindo de um restaurante com sua filha bastarda. O paparazzi, o mesmo que tirou a foto de Hollande na rue du Cirque: Sébastien Valiela. A lenda diz que Mitterrand autorizou a foto porque queria reconhecer sua filha. Em 1996, Mazarine e sua mãe foram ao funeral com a família legítima. Tudo muito sóbrio e civilizado - mas com os telefones grampeados.

Seu sucessor, o viril e simpático Jacques Chirac (1995-2007), único presidente condenado além de Pétain, teve uma vida longa e cheia de romances pouco ou nada secretos, segundo assumiu inclusive para aquela que foi sua esposa durante quase meio século, Bernadette. A lista, que não cabe nesta página, é mais digna de um playboy que de um estadista. E somente se encontra nos sites das revistas de celebridades.

Nicolas Sarkozy (2007-2012) foi o primeiro presidente alcoviteiro da França: midiático até a saturação, se inspirou em Silvio Berlusconi para utilizar sua vida particular e sua alma de formiga atômica como armas políticas. Deixou que lhe filmassem com gosto enquanto corria com seu moletom suado; veraneou em iates emprestados; amou os relógios grandes; converteu sua primeira mulher, Cécilia, em agitadora eleitoral e vice-presidenta; tentou solucionar sua crise conjugal por SMS ("se você voltar, termino tudo"), e nomeou primeira dama ("nosso caso é sério") a viajada cantora e modelo Carla Bruni, enchendo o palácio de um inédito vale tudo (ordinário).

Hollande (2012-?), solteiro, pai de quatro filhos, conhecido como Flamby, desalojou Sarkozy do trono prometendo que seria um presidente normal e cumpriu sua palavra ao deixar que lhe flagrassem quando visitava a atriz Julie Gayet, 18 anos mais jovem que ele, na traseira de uma moto oficial, com um capacete estilo Daft Punk. Ao ficar sabendo, a primeira dama-concubina, a bela e dominante jornalista Valérie Trierweiler - conhecida pela plebe como Rottweiler - sofreu um coup de blues (síncope de tristeza) e foi internada no La Pitié. Nove dias depois, continua ali. Frente a 500 jornalistas, Hollande foi questionado duas vezes sobre o assunto e disse: "França é um país de grande liberdade e isso é bom. E há também, como não em outros países, respeito à vida privada e à dignidade". Ontem se soube que "François Casanova", como lhe batizou Frédéric Mitterrand, estava há dois anos conversando sobre cinema no seu tempo livre.

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