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A Igreja enfrenta a reforma de Ortega

Os bispos acusam o presidente nicaraguense de querer instaurar um ‘poder dinástico’ no país

Carlos S. Maldonado
O presidente da Nicarágua Daniel Ortega com sua esposa, Rosario Murillo.
O presidente da Nicarágua Daniel Ortega com sua esposa, Rosario Murillo.E. FÉLIX (AP)

Em um país sem uma oposição política séria e articulada, os bispos da Nicarágua se transformaram na voz mais crítica contra as ambições políticas do presidente Daniel Ortega. A Conferência Episcopal da Igreja deste país da América Central enviou à Assembleia Nacional um documento em que recusam, com contundência, a reforma à Constituição proposta por Ortega, o acusando de querer instaurar um novo regime familiar ao estilo do somocismo, derrocado na revolução de 1979.

“Consideramos que a atual proposta de reformas à Constituição, vista em seu conjunto, está orientada a favorecer o estabelecimento e perpetuação de um poder absoluto em longo prazo, exercido por uma pessoa ou um partido de forma dinástica ou por meio de uma oligarquia política e econômica”, escreveram os bispos. “Não consideramos conveniente propor reformas a nossa Carta Magna, sobretudo, quando estas refletem a pretensão de uma mudança substancial e integral no sistema político da Nicarágua, em um momento de evidente desmantelamento institucional do país, com uma chamada oposição política que se debate em lutas internas e desqualificações recíprocas sem representar nenhuma alternativa para o país; em um momento em que é inexistente a separação dos poderes do Estado e sofremos experiências contínuas de irregularidades eleitorais e violações à Constituição Política que alteraram o rumo constitucional e democrático de nosso país”, acrescentou a alta hierarquia católica.

Em um país profundamente católico como a Nicarágua, a voz dos bispos tem forte incidência entre os nicaraguenses. É sabido que o mesmo Governo de Ortega tentou atrair os católicos ao seu projeto político. O Governo sandinista define-se oficialmente como “cristão, socialista e solidário” e a primeira dama do país, Rosario Murillo, incluiu no discurso oficial símbolos do catolicismo. Murillo aparece todos os dias na televisão oficial, à Hora do Ângelus (ou Toque das Ave-Marias) dos católicos, fazendo referências à Virgem e aos projetos sociais do Governo. O cardeal Miguel Obando y Bravo, deposto pelo Vaticano como arcebispo de Managua, foi incorporado pelo Governo e preside os atos oficiais onde aparecem Ortega e sua esposa. Mas todas essas piscadas de olhos com o catolicismo chocaram com a férrea oposição da Conferência Episcopal da Nicarágua, que acusa a Ortega e sua esposa de manipulação.

“Essa mistura estranha de política e religião é danosa para o país”, disse um o bispo consultado em Managua, que acrescentou que “nós, os bispos, fomos a única voz coerente, com autoridade moral” que enfrentou abertamente as arbitrariedades do Governo sandinista.

Em sua carta à Assembleia Nacional, os bispos advertem que “a Constituição Política do país é como um símbolo de integração política, cuja tarefa integradora não se realiza somente na adesão emocional a um texto, mas também através do compromisso para que, tanto o estabelecimento dos direitos e liberdades constitucionais, como a natureza dos poderes do Estado, não ultrapassem os canais do Estado de Direito”. Por isso, acrescentam, a Constituição não deve ser reformada. “O mais urgente na Nicarágua neste momento não é realizar mudanças à Constituição Política, mas apurar e retificar a mentalidade e a prática em relacionamento com o exercício da política”.

Dadas as duras críticas que a Igreja verteu contra o Governo de Ortega, a instituição não era tomada em conta no processo de consultas aberto pelo Parlamento para discutir as reformas. Um processo feito para melhorar a imagem do Governo, segundo analistas consultados em Managua, dado que nele só foram convidadas instituições que mantêm relacionamentos açucarados com o Executivo de Ortega, como o setor empresarial do país e os poderes do Estado, que controla o líder sandinista. Foi a pequena oposição parlamentar que exigiu que os bispos fossem incluídos nas consultas, revelou Eduardo Montealegre, ex-candidato presidencial e deputado pelo Partido Liberal Independente (PLI).

De qualquer jeito, a posição dos bispos já foi recusada formalmente pelos deputados da Frente Sandinista. Alva Palacios, primeira secretária da Assembleia Nacional e leal operadora de Ortega no Parlamento, disse à imprensa na terça-feira que “uma pequena parte dos consultados trouxe posições políticas de rejeição total e não com uma atitude de vir a discutir ou contribuir de como adaptar a Constituição às novas necessidades do povo da Nicarágua”.

A carta dos bispos tem permeado a oposição política do país, segundo alguns deputados. “Orientam não só à adesão, como também ao conjunto dos nicaraguenses por um rumo de sensatez e de paz. É uma mensagem extremamente importante. Neste contexto, até o tema da oposição é atinado. Indicam um caminho por onde devemos transitar, se efetivamente queremos contribuir com um país com prosperidade, justiça e democracia”, disse o deputado Enrique Sáenz, do Movimento Renovador Sandinista (MRS), composto por ex-membros da Frente Sandinista e fundado em 1995 pelo ex-presidente e escritor Sérgio Ramírez.

Apesar das críticas da Igreja, Ortega segue adiante com suas reformas na Constituição, as que lhe garantem permanecer no poder sem contrapesos, e co-governar com a cúpula empresarial da Nicarágua. A proposta de reforma elimina os ‘cadeados’ à reeleição e até a percentagem de votos necessários para ser declarado Presidente, ao mesmo tempo que dá poderes aos militares para poder ocupar cargos como servidores públicos públicos nos Poderes do Estado. De fato, fontes consultadas em Managua asseguraram que as únicas consultas que interessam a Ortega são as que faz com a cúpula do Conselho Superior da Empresa Privada (COSEP), a principal câmera empresarial do país, com quem mantém uma intensa negociação para aprovar uma nova Constituição que beneficie ao caudilho sandinista e ao grande capital nicaraguense.

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