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Wilco revive o legado de Daniel Johnston

Banda lança disco póstumo de um show compartilhado com o artista falecido em setembro passado

Capa do disco ‘Chicago 2017’, da banda Wilco.
Capa do disco ‘Chicago 2017’, da banda Wilco.
Ana Marcos

Quase como uma profecia autocumprida, a lenda de Daniel Johnston cresce, como o artista norte-americano sempre reivindicou ao longo da sua carreira, embora às vezes fosse difícil conseguir reconhecimento para um criador bipolar que começou com a fita cassete e apostou por uma música lo-fi, não destinada a todos os públicos. Passaram-se apenas quatro meses desde sua morte por ataque cardíaco, e o Wilco não esperou a uma data simbólica para reviver seu legado com Chicago 2017, um disco póstumo que o dBpm, selo da banda, pôs à venda na última sexta-feira. É algo assim como sua contribuição a uma das obsessões do artista de Austin, a fama. “Olá, sou Daniel Johnston e serei famoso”, costumava dizer, segundo quem o conheceu.

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Chicago 17 reúne canções do show que o Wilco e Johnston compartilharam na última grande turnê do artista pelos EUA. Inclui, além disso, faixas que ensaiaram na véspera da apresentação no estúdio do Wilco em Chicago, uma versão dos Beatles (“Todo mundo quer ser como os Beatles, / eu também”, cantava Johnston já em 1983) e arranjos inéditos de outros 14 temas do artista. “Ofereceram-nos para ser sua banda acompanhante nos dois últimos shows que ele fez em Chicago, e os gravamos. Entre os shows, tivemos a oportunidade de que Daniel viesse ao nosso estúdio”, disse Jeff Tweedy, vocalista da banda, a Javier Lafuente horas antes do seu show na Cidade do México.

“Sua família, através de sua fundação, achou que seria uma boa ideia que pudéssemos compartilhar todo este material”, afirma. A arrecadação da venda dos discos será destinada à fundação Hi How Are You, administrada pela família do autor, e que se dedica ao tratamento de doenças mentais —como o transtorno bipolar, que afligia Johnston— e todo tipo de vícios.

A decisão do Wilco de lançar este disco póstumo se soma a uma longa lista de colaborações e gestos de outros artistas que contribuíram para a difusão do trabalho de Johnston, sobretudo a partir dos anos noventa. O criador underground obcecado pelo amor, os quadrinhos e a fama acabou se tornando uma espécie de “músico dos músicos”. Ou seja, sem desdenhar o valor de seu trabalho musical e nos quadrinhos, cada menção que outro autor, produtor ou membro da indústria musical com certo prestígio e relevância fazia dele servia de alto-falante para que sua obra chegasse a um público mais amplo.

O exemplo mais efetivo dessa indústria do marketing que se criou a seu redor foi a aparição de Kurt Cobain, líder do Nirvana, na televisão pública norte-americana com uma camiseta do trabalho Hi How Are You com o desenho da rã Jeremiah, um dos símbolos da doença e da genialidade de Johnston. Era 1992, e àquela altura a carreira do artista passava por seu melhor momento. Ainda assim, como conta por email Jeff Tartakov, ex-empresário de Johnston, foi “um instante decisivo”. “Dava a sensação de que Daniel estava em todas as partes porque Kurt botou uma camiseta com a rã”, opina o representante e amigo do artista.

Naqueles anos, os grupos Yo La Tengo e The Pastels fizeram covers de músicas dele, e o balé da ópera de Lyon interpretou uma peça com música de Johnston. “Tudo é relevante, mas, com exceção da camiseta, sempre achei que a música do Daniel estava acima de todos esses gestos. Nos anos noventa ele publicou grandes trabalhos”, afirma, em referência a 1990 e Artistic Vice. “Naquele momento estava preparado para ser uma estrela, mas infelizmente seus problemas mentais e uma mudança de empresário derivaram em um atraso de quase 10 anos na sua carreira”, recorda, situando o ressurgimento seguinte no lançamento do documentário The Devil and Daniel Johnston (2005).

Tartakov não critica a edição de Chicago 2017, mas defende outras colaborações para tentar explicar a trajetória de Daniel Johnston. “Antes de chegar a Chicago para participar do show, ele nunca tinha visto Jeff Tweedy”, afirma. “Na verdade, na maioria de suas turnês acontecia o mesmo: não conhecia os músicos com quem tocava. Não se pode negar que foram de grande ajuda. Inclusive que simplesmente o mencionassem em uma entrevista, como fez Jeff Tweedy”, acrescenta, para depois apontar que nem o Wilco, nem o Yo La Tengo, nem nas décadas sucessivas outros artistas como Lana del Rey, Firehose, Beck e Tom Waits ―que também cantaram por Johnston― podem ser considerados seus padrinhos. Nem sequer o Sonic Youth foi capaz de manter uma relação estável com Johnston, como retrata o documentário – aquela fatídica noite em Nova York em que o artista acaba batendo no baterista da banda, e, apesar da violência do momento, os demais membros tentam ajudar Johnston, colocando-o num ônibus com destino à casa dos seus pais.

O líder do Wilco assim confirma ao EL PAÍS: “Daniel era um gênio, mas, para ser sincero, a relação que tive com ele era complexa. Era uma pessoa muito complicada de conhecer, sua doença o tornava bastante irreconhecível. Ele, de fato, não se lembrava do meu nome nem de quem era inclusive de um dia para outro, isto era um ponto difícil na hora de tratar com ele”.

Os amigos de verdade

Na lista dos amigos, os que para Tartakov estiveram ao lado de Johnston, contam-se, segundo o empresário, a cantora Kathy McCarty, seu produtor Brian Beattie, Bill Anderson, Jad Fair, cantor e vocalista da banda Half Japanese, e o guitarrista e cantor Wayne Kramer. Para reforçar seu argumento ―e tratar de desvinculá-lo de qualquer vinculação sentimental e, portanto, pouco objetiva— o empresário recorda que no mesmo dia em que sai Chicago 2017 também é lançada a reedição de um disco que Johnston fez com Fair, Its Spooky. Deste trabalho, de 1989, só sairão 1.500 cópias em vinil. Neste ano também sairá em vinil Fun.

Fair e Johnston se conheceram por carta em 1985, depois que o vocalista do Half Japanese o viu ao vivo em Austin. Alguns anos depois, no estúdio de gravação do Kramer em Nova York, começou sua amizade. “Quando gravaram esse álbum, Fair e sua banda eram mais conhecidos que Daniel, então foi uma grande oportunidade para que sua música chegasse a uma audiência muito maior”, defende Tartakov como outro exemplo de uma verdadeira influência de outro criador no trabalho de Johnston. E para alimentar sua ansiada necessidade de fama.

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