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“Talvez não voltemos a Alter do Chão”, dizem brigadistas voluntários do Pará

Daniel Govino, Marcelo Aron Cwerner e João Romano falam sobre o inquérito contra eles e sobre o receio de voltar a viver na região por segurança

Da esquerda para a direita, Daniel Govino, Marcelo Aron Cwerner e João Romano, da Brigada de Alter do Chão.
Da esquerda para a direita, Daniel Govino, Marcelo Aron Cwerner e João Romano, da Brigada de Alter do Chão.Lela Beltrão

Um barco rebocador afundou depois de uma tempestade na praia de Muretá, nas proximidades de Alter do Chão, distrito de Santarém (PA). Foi no dia 18 de novembro, e Marcelo Aron Cwerner, que trabalha com passeio fluvial na região, deu o alerta para a Marinha. Em pouco tempo, João Romano e Daniel Govino chegaram ao local. Só depois de duas horas apareceram duas lanchas com as autoridades. Essa foi a última atuação dos três amigos, voluntários da Brigada de Incêndios de Alter do Chão, antes de serem presos em 26 de novembro. Eles e Gustavo de Almeida Fernandes foram detidos sob acusação de atear fogo em parte da vegetação da Área de Proteção Ambiental (APA) da região. Depois de três dias e duas noites na prisão, os quatro, todos de São Paulo, foram soltos por habeas corpus, com as cabeças raspadas.

Para eles, foi uma “total surpresa” ter suas casas invadidas com mandados de busca e apreensão. “Quando vi os policiais na entrada da minha casa, estava despertando, eram seis e pouco da manhã. Achei que fosse uma situação na rua e que pediriam algum auxílio, porque minha casa já serviu de base para algumas operações. Eu até perguntei se o portão estava aberto. Foi quando me disseram que o haviam quebrado porque tinham o mandado. Demoramos para entender que estávamos sendo acusados de um crime ambiental, o que foi muito duro”, conta Marcelo, de 36 anos, ao EL PAÍS em uma espaçosa casa na Vila Madalena, em São Paulo. Ele, João e Daniel estão na cidade com suas famílias desde o final de semana.

Os quatro membros da Brigada se conheceram em Alter do Chão. Marcelo foi ao local como turista, em 2013 e, quatro meses depois, tinha comprado um terreno e seu primeiro empreendimento estava em construção: a Maloka Viva, um “espaço de consciência e desenvolvimento humano”, onde grupos fazem retiros de ioga e meditação. “Me apaixonei por aquele paraíso e comecei a procurar uma forma de ter uma conexão com o lugar”, diz. Passou dois anos viajando a cada dois meses para o local até que, depois do nascimento de seu filho, resolveu mudar-se definitivamente com a família em 2016, deixando uma carreira em ascensão no mercado financeiro, no qual trabalhou por 12 anos.

Daniel, de 36 anos, chegou antes. Dono de uma produtora de audiovisual, conheceu Alter do Chão no Ano-Novo de 2011. “Mergulhei no Tapajós e me apaixonei. Fiquei pirado com aquela água”, lembra. Em 2014, voltou e ficou. “Em 2015, já tinha minha casa construída lá, já estava trabalhando com turismo e com fotografia e vídeo na região”.

João, de 27 anos, também já trabalhava com produção de audiovisual para canais de esportes e viagens e levava uma vida de viajar trabalhando. “Era um sonho, mas ainda não me completava, porque ainda tinha que trabalhar para pagar conta, ficar naquela vida de São Paulo... Senti que precisava escolher um lugar para morar. Saí viajando de moto, e, na Chapada dos Veadeiros, tive contato com um brigadista que me contou sua história de vida e decidi morar lá. Mas ele perguntou se eu conhecia a Amazônia, e isso me despertou um chamado para ir para a floresta”. Depois de percorrer 6.000 quilômetros de moto, chegou a Alter do Chão. “Eu tinha o sonho de construir uma família e lá acabei conhecendo minha companheira, tivemos nossa filha, uma casa própria, totalmente sustentável, com energia solar, saneamento ecológico e trabalhos de permacultura”, conta ele, que já fez voluntariado em Moçambique e na África do Sul e hoje vive com a esposa e as filhas de sete anos e 10 meses.

O brigadista João Romano, durante a entrevista.
O brigadista João Romano, 27, durante a entrevista.Lela Beltrão

A Brigada, que conta com 16 voluntários, nasceu em julho de 2017, depois que um incêndio atingiu a casa de um amigo em comum. “Era meu vizinho. Logo que vi, foi um desespero, porque pensei que era a minha casa. Combatemos o fogo de forma comunitária porque os bombeiros não chegavam, então controlamos para que as chamas não chegassem na mata. Depois disso, fizemos o curso de primeiros socorros e eles mesmos comentaram que seria importante a presença de uma brigada ali”, narra João. “Percebemos que havia muito fogo e não havia uma resposta suficiente, porque os bombeiros de Santarém [a cerca de 40 quilômetros] cuidam de 13 municípios", acrescenta Daniel. Depois do episódio, seis voluntários fizeram a formação com o Corpo de Bombeiros.

Antes disso, os voluntários já realizavam outros projetos socioambientais em Alter do Chão. Marcelo criou um coletivo de coleta de resíduos orgânicos e implementação de fossas ecológicas. Juntos, os amigos também criaram o projeto Caju - Consciência Ambiental na Juventude, com aulas sobre prevenção de danos ambientais e proteção à natureza nas escolas da região. Para unir essas ações, criaram em fevereiro deste ano o Instituto Aquífero Alter do Chão. “Precisávamos de uma formalização, de um CNPJ e uma estrutura jurídica para viabilizar os projetos, até mesmo para a captação de recursos”, explica Marcelo.

Daniel define as iniciativas como uma “troca de saberes” com a comunidade local. “A gente leva esses projetos para lá, mas também aprendemos muito com eles. O conhecimento de cada ribeirinho equivale a vários livros”, diz.

O inquérito

O episódio que levou à prisão dos brigadistas aconteceu em setembro. Um incêndio florestal consumiu uma área equivalente a 1.600 campos de futebol em Alter do Chão e levou quatro dias para ser combatido. O delegado que comanda as investigações sobre o caso considera que imagens, depoimentos e, principalmente, interceptações de conversas dos celulares apontam para a participação criminosa dos voluntários nos incêndios. Eles também são acusados de desviar dinheiro repassado pela ONG internacional WWF, que, por sua vez, esclareceu que assinou com a Brigada um contrato de colaboração no valor de 70.600 reais para a compra de equipamentos.

Daniel, Marcelo, João e Gustavo alegam inocência e dizem que nunca haviam passado por algo parecido antes. “Logo após o incêndio, assim que ficamos sabendo das investigações, a Brigada foi à delegacia para colaborar. Repassamos todo o material de foto e vídeo e foi colocado à disposição deles todo nosso empenho para a elucidação dos fatos”, diz Marcelo. “Nosso foco sempre foi a floresta em pé. Desde o início, quando as pessoas vinham nos perguntar se sabíamos quem estava causando o fogo, sempre dizíamos que a investigação é competência da polícia. Não queríamos acusar ninguém”, comenta João. “Até porque é muito difícil saber quem faz. E nós sempre dissemos que não somos a polícia nem a Sema [Secretaria do Meio Ambiente], esse era nosso discurso”, acrescenta Daniel.

Até então, eles não sabiam que eram investigados. Todos eles falam em uma “armação” contra o grupo. “Acho que aconteceu porque a Brigada tomou uma proporção bem grande. Começamos a trabalhar junto com o prefeito, com a Secretaria do Meio Ambiente, com a Defesa Civil, com a Marinha, com Bombeiro. A gente começou a mexer na estrutura do governo local, porque essa era nossa proposta: não ser ativista e bater de frente com eles, mas colaborar e ir junto com eles”, diz Daniel.

“Nossa atuação sempre foi muito prática. Não estávamos ali para protestar, reclamar ou ser contra algo. A gente, na verdade, é a favor da interação entre os diferentes atores da sociedade na proteção à Amazônia”, complementa Marcelo. Tesoureiro da Brigada, ele afirma que sempre cuidou, “com muito zelo e rigidez”, da contabilidade da organização. “Tudo era feito com exigência de nota fiscal. O dinheiro só saía do caixa se fosse para empresas devidamente cadastradas na Receita Federal. Eu era até tido como o chato do administrativo, os colaboradores achavam que eu não confiava neles. Então, qualquer tipo de suspeita em relação a desvio de dinheiro é totalmente descabida. Temos todas as planilhas de controle, temos só uma conta no banco...”, garante. João, que abriu mão do trabalho para dedicar-se integralmente à organização, ironiza a acusação de desvio de recursos: “Eu, acusado de roubar dinheiro, fui preso com 46 reais na conta”.

Daniel comenta que, apesar da acusação, os sigilos bancários tanto do Instituto quanto dos voluntários não foi quebrado. Nesse momento, ante um sinal do assessor que atua com a equipe de defesa, os três deixam de falar no assunto. Daniel levanta da cadeira, visivelmente contrariado, e deixa a conversa durante alguns minutos. No início de dezembro, a defesa dos brigadistas foi reforçada pela rede Aliança, que conta com advogados, promotores e defensores públicos especializados em casos de violação de liberdades e direitos fundamentais. Todos a equipe de defesa trabalham pro bono (de forma gratuita e voluntária).

Os voluntários dizem que, no dia em que foram detidos, foram “solícitos” com as autoridades. “Sabíamos que estava tudo certo com nossa instituição, então cedemos os códigos de celulares, tudo para resolver [a situação] da forma mais rápida possível. Eu entreguei meu computador, drone, tudo”, conta João. “Todo o nosso histórico e nosso ideal é de proteger a floresta e estar em harmonia com a natureza. Foi muito duro fazer tudo isso e ainda ser levado de algemas, como um criminoso”, lamenta Marcelo. Perguntados se sentem bodes expiatórios, os voluntários respondem que preferem “não fazer ilações nem entrar em nenhuma conjuntura nacional nem especulações ideológicas”.

“Só queremos continuar fazendo nosso trabalho, queremos continuar com a nossa vida. Eu não sei o que vai ser da minha casa, o que vai ser da minha família. Neste momento, estamos vivendo um dia de cada vez, sem saber o que vai acontecer. Talvez não voltemos a Alter do Chão, talvez o Instituto não tenha continuidade”, diz Marcelo. João, por sua vez, teme pela segurança das duas filhas. “A Amazônia é a região onde mais se matam ambientalistas no mundo. Eu morava em uma casa de madeira, que nem tinha porta, era uma liberdade que não tinha em lugar nenhum... Tenho filhas e, para mim, é muito difícil, porque construímos essa casa, minha filha nasceu lá, preparamos tudo para viver os próximos anos tranquilos, mas aí acontece uma coisa dessas. Eu não posso voltar com minhas crianças para lá”.

Ele diz que a situação tem sido especialmente complicada para as pequenas. “Elas estão acostumadas a dormir na floresta, então, tem sido um desafio ficar em São Paulo com todo o barulho que há aqui. Minha bebê chora a noite toda. Minha vida ainda está um caos. Enquanto eu não estiver no meio do mato, em um lugar onde eu possa atar rede, onde minha filha é acostumada a dormir, estou ferrado”, conclui.

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