O estudante eunuco
A juventude de hoje pertence a uma geração mimada que pratica um fascismo 'light'
“Não concordo com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo” (Voltaire)
Há alguns dias houve um debate na BBC entre o presidente do conselho de estudantes de uma universidade britânica e um senhor que escreve colunas para The Times de Londres. O tema era a liberdade de expressão. Quem estava contra? O colunista do Times, cujo dono é o reacionário Rupert Murdoch? Não. O líder estudantil.
Algo raro está acontecendo nas universidades do Reino Unido, e nas dos Estados Unidos também. O estudante que falava na BBC é sintoma de uma tendência repressiva em um setor da sociedade onde se supunha que era dado um alto valor ao princípio do pensamento livre.
O motivo do debate entre o jovem e o jornalista, que pela idade poderia ter sido seu avô, tinha sido uma petição assinada por 3.000 estudantes da universidade Cardiff exigindo que Germaine Greer, antigo ícone da revolução feminista, fosse proibida de dar uma conferência em seu câmpus. Greer, como alguns ou algumas recordarão, é a autora do influente e provocador livro A Mulher Eunuco, publicado em 1970. O livro, tão irreverente como iconoclasta, exortava as mulheres a se libertarem dos estereótipos repressivos de outrora.
O problema dos estudantes de Cardiff com Greer, que hoje tem 76 anos, é que a consideram uma “misógina”. À primeira vista, é como chamar Martin Luther King de racista. Como se explica? Da seguinte maneira: Greer escreveu um texto em 2009 no qual argumentou que as transexuais não podiam ser consideradas mulheres. Tal afirmação foi considerada suficientemente ofensiva para declará-la persona non grata no campus. Greer se rendeu, mas não sem antes declarar na rádio: “Só porque você corta o pau e coloca um vestido não significa que você se transforma em uma mulher”.
A questão aqui não é se Greer tem razão ou não. A questão é que a censura de pessoas cujas ideias não confluem com as percepções do que é ou não aceitável se está estendendo pelas universidades anglo-saxãs. Alguns exemplos.
Na semana passada um professor da Universidade Yale, nos Estados Unidos, foi rodeado por um grupo de estudantes que lhe gritaram, entre outros impropérios, “cale a puta boca!”. Seu pecado: ter aconselhado a seus alunos que, se vissem alguém usando um disfarce “ofensivo” no Halloween, não lhe dessem bola.
No final de setembro, a Universidade de Warwick, na Inglaterra, cancelou uma conferência de uma mulher nascida no Irã, chamada Maryam Namazie. Ela é uma marxista conhecida por seu virulento desprezo pela religião, a começar pela sua de nascimento, o islã. A universidade explicou que seu comparecimento no campus incitaria “o ódio”.
E um exemplo mais entre milhares: uma professora de Direito na Universidade Harvard escreveu um artigo no ano passado lamentando a pressão que recebia do corpo discente para que não desse aulas sobre como a lei responde a casos de estupro. A professora, Jeannie Suk, comparou essa atitude com uma tentativa de ensinar cirurgia a um estudante de medicina sem expô-lo à angústia de ver sangue.
Segundo Suk, as entidades estudantis se opunham às aulas sobre a lei e a violência sexual porque temiam que a experiência poderia se tornar “traumática”. E aqui, aparentemente, está o xis da questão. O líder estudantil que falou na BBC explicou que o objetivo da censura era sempre dar prioridade “à segurança” dos universitários. Um artigo recente escrito pelos acadêmicos na revista The Atlantic, dos Estados Unidos, aprofundou o tema. Explicou que para os que seguem essa nova corrente a meta final era proteger “o bem-estar emocional” dos estudantes, transformando os campus em “lugares seguros” onde “jovens adultos estão protegidos contra palavras e ideias que os façam sentir-se incômodos”. “Está sendo criada uma cultura”, acrescentava o artigo”, “na qual todo mundo tem de pensar duas vezes antes de abrir a boca”.
Alguém que optou por não abrir a boca nunca mais em eventos estudantis é o famoso comediante norte-americano Chirs Rock, que construiu uma brilhante carreira à base de ridicularizar tabus raciais, sexuais e políticos. Rock, que é negro, disse em uma entrevista recente que já não vai às universidades porque são “conservadoras demais”. Sua principal preocupação, afirmou, é “nunca ofender ninguém”.
A que se deve tanta suscetibilidade entre os estudantes do mundo anglo-saxão? Em parte isso terá a ver com a pressão conformista exercida pela polícia religiosa das redes sociais, o medo à crucificação verbal de que padecerá qualquer um que divirja da ortodoxia da manada. Mas, como também sugere o artigo da revista The Atlantic, a juventude de hoje, especialmente a que teve a sorte de ir à universidade, pertence a uma geração mimada. É verdade que hoje os jovens têm dificuldade para conseguir trabalho, mas, pelo menos nos países ricos do Ocidente, seus pais tiveram a melhor e mais pacífica qualidade de vida que a espécie humana conheceu. Esses afortunados pais se esforçaram de uma maneira nunca vista para não ferir os sentimentos de seus filhos, para protegê-los do feio, do duro e do difícil da vida.
A consequência tem sido o aparecimento de uma geração de adolescentes e jovens na casa dos 20 anos psicologicamente delicados, que detectam ofensas onde seus pais –e mais ainda os pais dos pais, que viveram guerras– não as teriam imaginado. Antes, quando o colunista do Times era jovem, os estudantes censuravam os que chamavam de fascistas. Para bem ou para o mal, faziam isso a partir de um processo de raciocínio político. Os militantes universitários anglo-saxões de hoje censuram com base no que sentem. Praticantes de uma espécie de fascismo light, eles são os que mandarão dentro de não muito tempo. Se a coisa não mudar, teme-se pela democracia.
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