Aposta de Orbán em vacinas alternativas rompe unidade da UE contra a pandemia
Metade da população húngara vacinada recebeu imunizantes que não foram incluídos no certificado europeu que facilita a mobilidade entre os países a partir desta semana
A estratégia conjunta de vacinação, proclamada por Bruxelas como um dos sucessos europeus contra a covid-19, perdeu um elo. A Hungria decidiu em maio se desvincular da nova rodada de compra conjunta de vacinas para 2022 e 2023, tornando-se assim o primeiro país da União Europeia que tenta garantir o fornecimento por seus próprios meios. A aposta de Budapeste nas vacinas alternativas, como a russa ou a chinesa, esbarra também nas regras do novo certificado europeu de vacinação, que entrou em vigor na quinta-feira e permite maior liberdade de movimento entre os países do bloco para as pessoas que tiverem recebido alguma das vacinas autorizadas pela Agência Europeia do Medicamento (EMA, na sigla em inglês).
Nenhum outro sócio seguiu, por enquanto, o caminho húngaro. Mas o sucesso da sua campanha de imunização (56,8% da população recebeu pelo menos uma dose) dá à Hungria a liderança em cobertura vacinal per capita na UE, ao lado de Malta, e ver isso poderia ser tentador para outros sócios comunitários, sobretudo caso ocorram novos tropeços no calendário europeu de distribuição de doses.
A representação permanente da Hungria na UE diz que a segunda rodada da estratégia europeia, que já reservou 1,8 bilhão de doses da BioNTech-Pfizer, obrigaria o Governo de Orbán a comprar mais vacinas do que considera necessário. E acrescenta que “o contínuo fornecimento de vacinas da UE e de fora da UE permite ao país manter reservas suficientes não só para a vacinação completa da população, mas também para injetar doses de reforço se for necessário”.
A estratégia húngara, entretanto, desvia-se cada vez mais da UE, onde mais de metade das doses distribuídas até agora (286 de 423 milhões) são da Comirnaty, a marca do imunizante produzido pela companhia alemã BioNTech em parceria com a norte-americana Pfizer. Essa marca se transformou na vacina europeia por excelência e no eixo de uma estratégia de vacinação, que talvez seja preciso repetir em 2022 e 2023.
A Hungria, com seus quase 10 milhões de habitantes, seguiu um caminho alternativo que se baseia em grande parte na compra de vacinas russas e chinesas. De 15,7 milhões de doses entregues até agora ao país de Orbán, 5,1 milhões são da Beijing CNBG (do laboratório chinês Sinopharm), e dois milhões da russa Sputnik. “A Hungria terá boa parte da população vacinada com essas vacinas e com a incerteza de que lhes servirá para viajar”, alerta o eurodeputado socialista espanhol Nicolás González Casares, membro da comissão parlamentar que monitora as estratégias de vacinação.
O regulamento sobre o certificado europeu da covid-19, que entrou em vigor nesta quinta-feira, 1º de julho, prevê a livre circulação sem restrições (como exames e quarentenas) para as pessoas que já tiverem recebido alguma vacina autorizada pela EMA (que são as dos laboratórios Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Janssen, até agora). Na Hungria, por enquanto, essas quatro vacinas representam 50% das distribuídas. Um percentual que poderia cair nos próximos meses se o Governo de Orbán concentrar suas aquisições em vias alternativas à europeia.
A norma comunitária contempla a possibilidade de que o certificado se estenda também a vacinas autorizadas em regime de emergência pela Organização Mundial da Saúde, como é o caso da chinesa da Sinopharm. Mas esse reconhecimento não é automático, e sim sujeito à autorização por parte de cada um dos 27 sócios da União. Um requisito que poderia complicar a possibilidade de deslocamento de boa parte da população húngara enquanto a vacina russa e chinesa não receberem o aval da EMA. No caso da Sputnik, ainda não foi validada nem pela OMS nem pela EMA.
Sem contrato
A presidenta da Comissão Europeia (Poder Executivo da UE), Ursula von der Leyen, tinha conseguido até agora manter a unidade dos sócios comunitários apesar das críticas iniciais pela lenta distribuição das vacinas contratadas e os repetidos percalços no calendário de entregas. A estratégia viveu momentos críticos durante o primeiro trimestre deste ano, quando vários países – como Áustria, Dinamarca e a própria Hungria – cogitaram movimentos unilaterais para melhorar o fornecimento.
A situação entrou nos trilhos a partir de abril, e as campanhas de vacinação avançam em ritmo acelerado em quase todos os países da União – 61% da população maior de 18 anos já recebeu pelo menos uma injeção. Mas o crescente distanciamento de Orbán em relação aos demais governos da UE ameaça reabrir o debate sobre a estratégia comum europeia.
O desplante de Orbán a Bruxelas em matéria sanitária chegou no momento de assinar o novo contrato de reserva de doses com a BioNTech-Pfizer. O acordo, assinado pela Comissão e os dois laboratórios em 20 de maio, foi tornado público nesta semana, mas em uma versão cheia de trechos censurados. O documento permite observar que os países participantes na aquisição de vacinas já não são os 27 Estados da UE, e sim apenas 26. Todos, menos a Hungria.
“A Hungria participou plenamente e desde o começo na primeira rodada de acordos conjuntos de compra”, afirmam fontes da delegação diplomática húngara em Bruxelas. A mesma fonte recorda, entretanto, que “dados os atrasos na entrega de vacinas no começo de 2021, a Hungria teve que recorrer a vacinas autorizadas conforme o regime de emergência previsto na diretriz farmacêutica”.
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Clique aquiA diplomacia húngara acrescenta que “segundo o novo contrato da UE com a Pfizer, a Hungria teria tido que se comprometer a adquirir 19 milhões de doses, o que é uma quantidade muito elevada inclusive para os anos 2022-2023, principalmente porque, a partir de 2022, já estará plenamente operacional na Hungria uma fábrica nacional de produção de vacinas”.
Uma fonte da Comissão Europeia disse que “só a Hungria pediu para sair e, portanto, não está coberta pelo contrato”. O organismo comunitário acrescenta que “todos os outros Estados membros terão a oportunidade de adquirir vacinas de acordo com o novo contrato”.
A ruptura de Budapeste com a gestão europeia da pandemia coincide, além disso, com um crescente distanciamento entre Orbán e demais sócios da UE, agravado nas últimas semanas pela ofensiva do Governo húngaro contra a comunidade LGBTI e pela contínua sabotagem de Budapeste à política externa comum europeia.