As cicatrizes de Wuhan, um ano depois do coronavírus

Cidade chinesa considerada o foco inicial da pandemia recuperou quase totalmente a normalidade, mas as sequelas são visíveis no ânimo da sua população

Turistas visitam umas das pontes de Wuhan sobre o rio Yangtzé, no final de novembro.HECTOR RETAMAL (AFP)

Os rostos dos defuntos, gravados em cinza, observam impassíveis das suas lápides negras, tão novas que ainda reluzem. Diante de algumas há restos de incenso queimado, indícios de uma visita recente. Em outras, uma pedrinha segura maços de dinheiro falso, para que, segundo a tradição chinesa, o morto possa usá-los no outro mundo. Várias têm uma foto colorida, ainda presa com durex. Nesta ladeira do cemitério do morro de Biandanshan, o maior de Wuhan, a grande maioria dos coveiros morreu nos mesmos meses: janeiro, fevereiro e março deste ano, o auge da pandemia aqui. Muitos faleceram na faixa dos 50 a 70 anos, alguns até mais jovens. A covid-19 não é mencionada em seus epitáfios. Tampouco é preciso disso para saber o que levou tantos deles.

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Ao pé do morro, além do silêncio quebrado apenas pelo canto dos pássaros, começa a agitação de uma cidade industrial de 11 milhões de habitantes, porto fluvial, polo de transportes e sede tecnológica. Quando completa-se um ano que os primeiros casos começaram a dar entrada nos hospitais, o coronavírus já parece ser apenas um pesadelo distante para a cidade que foi considerada o foco original da pandemia, com o registro de 50.000 casos e 3.869 mortes. O confinamento que trancou seus moradores em casa durante 76 dias, até ser suspenso em 8 de abril, já ficou bem para trás. “Wuhan é agora a cidade mais segura do mundo”, jactam-se seus habitantes, repetindo insistentemente esse bordão com a fé de recém-convertidos.

Lápides no cemitério de Biandanshan Hill em Wuhan.Macarena Vidal Liy

Seus museus e pontos turísticos sempre têm público, em grande parte graças a uma política de entradas gratuitas —com hora marcada, para evitar aglomerações— que o Governo municipal aplica para estimular as visitas. Os congestionamentos voltaram às suas avenidas, e a estação ferroviária central, vazia até abril, fervilha de viajantes. Reluzem as lojas em áreas comerciais como a rua Han. Restaurantes e bares, sem limites de lotação, estão abarrotados. “No princípio custou, as pessoas não se atreviam a compartilhar espaços. Mas em pouco tempo começamos a lotar quase todos os dias. Havia muita vontade de sair, de passear, de sentir que estamos vivos”, diz Han Sunlin, dona de um restaurante no pitoresco bairro de Lihuangpi, com seus edifícios de estilo colonial na antiga concessão de Hankou, na orla do rio Yangtzé.

A poucos quarteirões dali, o clube 404 oferece música ao vivo —rap, hip-hop, techno, house— quatro vezes por semana. Desde que reabriu, em junho, enche a cada show, algo que não conseguia antes da pandemia. “Merecemos nos divertir. Depois de passarem tanto tempo trancadas, as pessoas precisam liberar suas emoções”, justifica o DJ Daxiang (“Elefante”), um gigante de 26 anos e quase dois metros, cabeleira cacheada e grandes tatuagens, que durante o confinamento atuou como voluntário na distribuição de alimentos entre ex-detentos. A fome de diversão se junta à vontade de esquecer: “Não queremos pensar em tudo pelo que passamos. Estamos orgulhosos de como respondemos e conseguimos derrotar o vírus. Mas foi o pior momento de nossas vidas, desejamos virar a página”, aponta Anna, ex-professora de inglês que durante a crise ajudou a coordenar a distribuição de ajuda vinda do Japão.

A cidade não registra nenhum caso de covid-19 desde maio, quando toda a população foi submetida a exame de coronavírus. As cercas azuis e amarelas que durante meses retiveram os moradores em seus prédios desapareceram. Embora muitos ainda usem máscara por precaução, deixou de ser obrigatória. A análise pelo aplicativo de rastreamento é um trâmite quase pitoresco; os controles de temperatura são muito menos frequentes que há alguns meses.

“Antes nossas crianças tinham que trazer um formulário com seus dados de saúde, mas faz tempo que já não se pede. Só se precisarem viajar para competições fazem exames PCR, e se passarem muito tempo fora fazem na volta também, mas é praticamente a única situação”, conta Sergio Ledesma, coordenador do programa esportivo do clube de futebol Wuhan Três Cidades, do qual participam 19 treinadores espanhóis.

A exposição 'Gente primeiro, vida primeiro' em um centro de convenções de Wuhan. Getty Images (getty)

Narrativa triunfalista

No palácio de convenções Wuhan Salon, que durante a pandemia foi um dos centros de quarentena para doentes leves e casos suspeitos, a principal exposição em cartaz se chama Gente primeiro, vida primeiro. O grandioso evento oficial transmite essa mensagem positiva a um público que parece composto, sobretudo, de escolares e funcionários de organismos oficiais. Essa demonstração pública de triunfalismo reúne mais de 1.100 fotografias, a experiência de entrar no holograma de uma UTI e de usar um equipamento de proteção individual (EPI). É um relato tridimensional segundo o qual o vírus pode ser derrotado graças à capacidade de sacrifício, à firmeza e à coragem dos cidadãos, mas, sobretudo, graças à sabedoria do presidente chinês, Xi Jinping, e à liderança do Partido Comunista.

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“A grande luta contra a epidemia nos uniu mais; com a firme liderança do Partido Comunista, as vantagens significativas do sistema socialista com características chinesas e a unidade dos 1,4 bilhão de chineses, a nação chinesa certamente superará os obstáculos e avançará sem hesitar em nossa marcha rumo a uma nova era”, diz o painel final da exposição.

Lá estão todos os triunfos: os hospitais construídos em tempo recorde, os 42.000 profissionais sanitários vindos de outras províncias para prestar ajuda, os médicos militares, os milhares de voluntários que garantiram o abastecimento de cada moradia durante os meses de confinamento...

Em uma das salas, os médicos mortos recebem uma discreta homenagem, com seus retratos em 3 x 4, preto e branco. No meio deles, nem no centro nem nos extremos, para não ocupar um lugar destacado, está o oftalmologista Li Wenliang, repreendido por advertir aos seus colegas sobre a doença. Não há referência alguma àquela admoestação; tampouco se alude ao caos das primeiras semanas da crise, os erros iniciais das autoridades e à opacidade que impediu até agora a visita de especialistas estrangeiros a lugares-chaves.

Feridas invisíveis

Apesar da aparência de normalidade e das mensagens otimistas, as cicatrizes da pandemia continuam por aí, como as lápides no Biandanshan. E, como todas as feridas recentes, doem ao ser tocadas.

Algumas são econômicas. Quem as sofre são, sobretudo, os mais desfavorecidos. Os migrantes vindos de zonas rurais. Os que não tinham um colchão econômico que paliasse a inatividade da pandemia. A reabertura não chegou a tempo para muitos restaurantes e pequenos comércios, cascas vazias e trancadas a cadeado, em cujo interior a poeira se acumula.

Mas, sobretudo, há as cicatrizes invisíveis. Qin Yu, organizadora logística, queixa-se de dores de estômago e insônia que atribui ao estresse daqueles meses. Alguns temem uma segunda onda com o inverno que começa. Antigos pacientes falam de sequelas, de um cansaço maior, dificuldades para se mover e respirar.

A senhora Li, de 77 anos, não se atreve a sair muito à rua desde que lhe deram alta, poucas semanas antes da reabertura de Wuhan. Ela se cansa com facilidade e parou de cozinhar para todos em casa, tarefa na qual foi substituída por seus filhos. Tampouco vai diariamente ao mercado, como antes —prefere recorrer à Internet. Não é só o cansaço, mas também o temor de se contagiar nas aglomerações, embora oficialmente não surjam novos casos há vários meses.

Uma ex-professora universitária que atendia um telefone de ajuda a pacientes durante a pandemia conta que alguns dos que recebiam alta não queriam voltar para suas casas. “Tinham medo da rejeição dos seus vizinhos, de serem deixados no vácuo”, conta essa mulher, que prefere preservar sua identidade. Tampouco quer se sujeitar a represálias uma psicóloga que detectou remorsos entre os sobreviventes. Cita, entre outros exemplos, o de um chefe de família que após se curar foi embora de casa. “Sentia-se culpado de ter adoecido e criado problemas para os seus”, relembra.

Uma rua comercial em Wuhan em 1º de dezembro.AFP

A senhora Li viveu na carne essa rejeição vicinal relatada por psicólogos. “Quando acabei a quarentena depois de me darem alta, uma vizinha com quem sempre tinha me dado muito bem, uma pessoa culta, uma professora, me viu na rua e começou a gritar. ‘Você! Não é você a doente? O que você está fazendo aqui? Tem certeza de que está curada?’. Disse-lhe de todas as maneiras possíveis que já tinha me curado e tinha todo o direito de passear por onde quisesse. Mas não, ela me evitava sistematicamente e se queixava. Acabou se mudando, está com o apartamento à venda”, conta essa contabilista aposentada, encolhendo os ombros.

A psicóloga atribui a rejeição aos rumores sobre a possível reinfecção de doentes já curados, ao medo de uma segunda onda e ao desconhecimento. A ex-professora aponta algo mais profundo: “Na China não podemos debater sobre as coisas. Agora o vírus passou e demos esse capítulo por encerrado, nos dizem que tudo correu muito bem, mas realmente não sabemos, porque não se pode falar disso”, lamenta. Os jornalistas cidadãos que gravaram o caos das primeiras semanas nos hospitais continuam detidos. Zhang Zhan, retida em Xangai, pode ser condenada a até cinco anos de prisão. Chen Qiushi está nas mãos das autoridades. Do ex-empresário Fang Bin não se teve mais notícia.

Pessoas praticando tai chi em um parque em Wuhan no final de novembro.HECTOR RETAMAL (AFP)

Uma visita pendente

O Governo chinês sempre evitou identificar Wuhan como origem da pandemia. Nos últimos três meses expôs com crescente insistência a teoria de que o vírus já existia no exterior —na Europa ou na Índia— antes de chegar a esta cidade. Uma missão internacional da Organização Mundial da Saúde para investigar a origem do vírus deve viajar para lá e visitar, entre outros lugares, o mercado de Huanan, embora Pequim ainda não tenha autorizado uma data para isso.

A mídia estatal chinesa tem repercutido amplamente estudos científicos que apontam a circulação do vírus pela Europa antes do que se acreditava. A China afirma ter encontrado restos de vírus em pacotes de alimentos congelados importados, insistindo no risco de que esses produtos possam espalhar a doença. As alfândegas locais multiplicaram as inspeções.

Onde e como o vírus começou a circular? Rastrear o vírus não pode resolver todas as dúvidas, mas é muito provável que ele coexistisse em vários lugares antes de ser detectado em Wuhan”, declarava Zeng Guang, ex-epidemiologista-chefe do Centro de Controle de Doenças da China, ao jornal Global Times, editado em inglês pelo Partido Comunista.

É uma teoria na qual muita gente em Wuhan acredita com convicção. “Claro que o vírus não surgiu aqui. Não sei se veio em comida congelada ou se foi trazido de fora por soldados que participaram dos Jogos Militares [que a cidade acolheu em outubro de 2019], mas aqui não começou”, afirma Anna, movendo a cabeça para enfatizar suas palavras. Como muitos outros na cidade, esta ex-professora argumenta que, vendo como outros países administraram a pandemia, a avaliação positiva da gestão por parte do Governo chinês disparou. “Absolutamente”, enfatiza com um sorriso.

Outros são mais céticos. “O fato é que os primeiros casos foram detectados aqui, e vamos ter que conviver com isso por muito tempo”, opina a ex-professora universitária.

Esclarecer a origem da pandemia, conforme advertem os próprios especialistas da OMS, pode ser um trabalho de anos, se é que alguma vez será possível. Wuhan também levará anos para apagar a maior parte de suas cicatrizes econômicas, físicas e morais. Outras serão permanentes. As lápides negras no cemitério de Biandashan, e seus rostos de tantos mortos prematuros, são um testemunho disso.

“É CLARO QUE O VÍRUS NÃO COMEÇOU NESTE MERCADO!”

Em nenhuma parte a tristeza de ver comércios fechados é mais evidente que nas proximidades do mercado de frutos do mar Huanan, a “zona zero” da crise, apontada nas primeiras semanas como o local onde a propagação do vírus começou.

O térreo, onde eram vendidos animais de todo tipo, permanece interditado desde então. As cercas que impediam o acesso provisoriamente foram substituídas por barreiras de aspecto permanente, azul-turquesa. Sobre a guarita do guarda alguém pintou as letras SB, iniciais de sha bi, idiotas, em mandarim. Muitas lojas dos arredores penduram cartazes de “aluga-se”. Só retomaram a atividade as lojas do segundo andar, acessível por uma escada lateral. Há cerca de 20 ópticas, nas quais o cliente só entra se tomar a temperatura e checar o aplicativo de saúde no celular.

Numa tarde qualquer, há poucos clientes por ali. Entediados, alguns dos lojistas cochilam sobre seus balcões. Outros se lançam sobre qualquer potencial consumidor. Ao fundo, na penumbra, está bloqueada uma escada que dá no andar proibido. Um segurança surge do nada: “Fora daí! Ou você vem comprar óculos ou se manda!”.

“Medo não, já não temos”, comenta um balconista da óptica Xiamei. “No começo, quando ficamos sabendo que a coisa era séria, talvez sim. Mas agora não. Desinfetaram o mercado de cima a baixo várias vezes e, desde que abrimos, em maio, não houve incidentes. Não há lugar mais seguro que este.” O negócio, admitem os comerciantes, não vai bem. “Vêm os clientes que nos conhecem de sempre. Novos… não. Ainda tem gente preocupada com a fama do mercado.”

Ninguém sabe se o mercado de frutos do mar de Huanan algum dia será reaberto. A OMS quer examiná-lo a fundo e salientou que “continua sem estar claro” se esta foi a origem da pandemia, embora se acredite que tenha servido, nas palavras de seu porta-voz, Mike Ryan, como “um ponto de amplificação” do vírus.

“Claro que o vírus não começou neste mercado! Trabalhei 10 anos lá e nunca tive nenhum problema!”, exclama o senhor Cui (nome fictício), um dos comerciantes que vendiam no Huanan. Como dezenas dos 653 vendedores de lá, instalou-se em um dos quiosques que a prefeitura ofereceu num dos maiores mercados atacadistas da cidade, o Hankoubei, longe do centro.

Sua mãe evoca aqueles difíceis dias de dezembro de 2019, quando começaram a surgir os casos do que então se considerava uma pneumonia estranha. Dos 41 primeiros casos, 27 estavam relacionados ao Huanan, segundo um estudo posterior. Alguns eram vendedores. “Todos estávamos preocupados”, recorda a mulher. “As pessoas se queixavam de que tinham dificuldades para respirar, se sentiam mal, e cada vez ouvíamos falar de mais casos”. O fechamento chegou repentinamente. No mercado de Huanan —onde eram vendidas desde salamandras até cervos, vivos ou mortos, para seu uso em medicina tradicional chinesa ou para serem servidos como iguaria na mesa de algum milionário—, os vendedores tiveram que abandonar suas bancas precipitadamente, muitos ainda com produtos ali dentro. Mesmo depois de várias rodadas de desinfecção, de coleta de amostras e de diversas inspeções, o mau cheiro se prolongou durante meses. Em abril, quando o bloqueio de Wuhan foi suspenso, ainda era perceptível através das máscaras.

“Durante um mês estivemos de braços cruzados, não tínhamos onde trabalhar. Depois nos ofereceram vir para o Hankoubei. Não está mal e o aluguel do box é mais barato. Mas gostaríamos de voltar para o Huanan, já o conhecíamos bem, nos conheciam e era mais central”, explica o comerciante. O Hankoubei, como o resto dos mercados atacadistas, permaneceu aberto durante os 76 dias de fechamento de Wuhan, para garantir o abastecimento da população.

Os vendedores dizem que as medidas de controle estão mais duras do que no começo da pandemia. Eles têm a temperatura tomada com regularidade, e as inspeções estão mais meticulosas. No Hankoubei se vendem peixes, tartarugas e diversas espécies de frutos do mar vivos, mas não outros animais.

Em outra área do mercado, Zhu, que prefere não dar seu nome verdadeiro, lamenta a mudança do Huanan. “Eu fornecia para hotéis, restaurantes… Perdi tudo isso e tive que recomeçar. Não é fácil. Não nos deram nenhuma compensação quando nos obrigaram a fechar. Estou convencido de que o mercado não foi a origem do vírus, as pessoas sabiam o que estavam fazendo. Mas, se foi, todos dizem que veio de algum animal selvagem vivo ou de algum produto congelado. Nunca vendi nem uma coisa nem outra, mas estou pagando o pato.”

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