Lista de nomes ‘antifascistas’ cria clima de tensão e resistência às vésperas de novo ato pró-democracia
PDF com centenas de nomes foi atrelado a deputado Douglas Garcia, que nega relação com o “dossiê”. Justiça de São Paulo proíbe que grupos manifestantes “antagônicos entre si” se reúnam para protestar na mesma data e horário no domingo, na avenida Paulista
Da noite para o dia, centenas de pessoas acordaram sabendo que participam de uma lista. Com fotos, endereço das redes sociais e de suas próprias casas e alguns números de celulares, homens e mulheres de diferentes idades e profissões foram listados com alguma identificação “antifascista”. A tal lista de mais de 900 páginas tem centenas de nomes. É um PDF que chegou ao WhatsApp de jornalistas e pessoas que estão no campo oposto ao dos apoiadores do Governo do presidente Jair Bolsonaro. O EL PAÍS conversou com oito pessoas que se reconheceram nela. Todos foram alertados de quarta para quinta por amigos de que estariam na tal relação. Não se sabe quem recebeu primeiro o documento.
Um deles havia protestado contra o fascismo no Facebook durante a eleição de 2018. Era a única memória recente que tinha sobre qualquer menção ao fascismo. Outras fazem campanha contra o presidente Bolsonaro e adotaram o filtro de foto na rede social onde se lê “antifascista” no último final de semana, quando houve os protestos na avenida Paulista pela democracia. Há também um integrante da torcida antifascista do Palmeiras, Gabriel Santoro, que esteve presente no ato do dia 31 em São Paulo. Três fotos dele estão no tal dossiê. Duas de suas redes sociais, que são abertas, e uma de sua presença no vão do MASP, provavelmente tirada da rede social de algum outro amigo. Santoro está acostumado a ser acossado por “fascistas” do seu time, segundo ele, torcedores que fazem barulho e têm posições extremadas. Mas são minoria, diz ele. Os antifascistas, como Santoro, escolhem se posicionar porque não gostam de se ver atrelados à imagem do presidente Bolsonaro, que já foi algumas vezes a jogos do Palmeiras, time para o qual torce em São Paulo. “Volto para a Paulista neste final de semana, e a parada vai ser maior”, conta ele, mencionando o novo ato marcado para este domingo, 7.
A expectativa com a manifestação é enorme. No último domingo, 31, o ato acabou com uma chuva de bombas de gás lacrimogêneo depois de integrantes pró democracia sucumbirem a provocações de alguns extremistas. O quadro levou o governador de São Paulo, João Doria, a anunciar que não haveria mais atos no mesmo local e hora de movimentos antagônicos. Nesta sexta-feira à noite, a Justiça de São Paulo seguiu a recomendação do Governo estadual e proibiu a realização dos protestos dos grupos adversários na avenida Paulista, no domingo. O juiz Rodrigo Galvão Medina proibiu que participem do ato “os grupos manifestantes manifestamente antagônicos entre si (tais como “Atos Antifascismo”, “Democracia”, “Pedalada Antifascista”, “Mais Democracia”, “Ato Antifascista”, “Torcida Organizada”, “Mancha Verde”, “Torcida Independente”, “Torcida Jovem”, “Gaviões da Fiel", “Secundaristas em Luta”, “Canal Secundaristas”, “Democracia, fascismo, racismo e Homofobia, LBTQA”, “Vidas Pretas Importam”, “BRASIL CONTRA O COMUNISMO", “Movimento Juntos Pela Pátria”, “Damas de Aço”, “Guerreiras do Sudoeste”, dentre outros), [...] evitando-se assim confrontos e prejuízos decorrentes desta realidade, zelando as autoridades administrativas competentes para que tal empreitada possa ter seu efetivo sucesso", diz o magistrado, na decisão.
Santoro, assim como todas as pessoas ouvidas pela reportagem, não tiveram registro de ataques em redes sociais depois de saberem da existência do PDF que circulou entre eles. “Meus amigos me avisaram de quarta para quinta”, diz uma jovem que prefere não se identificar. “Sempre fui incisiva contra este Governo, e me coloco como antifascista nas redes sociais”. Apesar do mal-estar com a lista, ele diz que não sofreu nenhum assédio por causa dela. “Eu já era atacada por bolsonaristas por minhas posições políticas desde sempre”, completa.
Outra que se reconheceu ali foi Karina, que temia falar publicamente e revelar seu nome. “Fiquei com medo inicialmente, depois vi que era uma coisa básica, amadora. Qualquer pessoa com filtro antifascista vira alvo”, diz ela. Filtro são as tarjas virtuais que se sobrepõem às fotos de perfil das redes sociais, que se replicam em campanhas que viralizam nas redes. Ela também tomou conhecimento da lista através amigos, e não tem registro de ataques nas redes.
O material começou a circular por WhatsApp na última quarta, um dia depois de o deputado estadual do PSL, Douglas Garcia (PSL-SP), mostrar um calhamaço de páginas com uma lista avisando que havia recebido entre 700 e 1.000 nomes de diferentes fontes ao fazer um pedido público em seu Twitter nesta segunda, 1 de junho. “Se você conhece o nome completo de algum autodenominado ‘antifascista’ e possui provas de que ele é o que afirma ser, peço que anexe a prova ao respectivo nome completo e envie ao meu e-mail: douglasgarcia@al.sp.gov.br. Podem dar RT aqui sem dó, por favor”, disse ele no tuíte que teve quase 13.000 compartilhamentos.
No dia 2, o parlamentar gravou um vídeo ao lado de um tal dossiê, soltando as páginas de cima a baixo para dar uma ideia da quantidade de nomes que havia reunido. Também exibiu em plano desfocado a sequência de fotos de pessoas ali contidas. O deputado avisou que estava mandando o material para que a polícia investigasse os nomes e suas vinculações com atividades terroristas, e que enviava “para a embaixada dos Estados Unidos, e para consulados americanos no nosso país para que tenham ciência, um dossiê com nomes de pessoas em território brasileiro com suspeitas de associação e participação ativa nesses grupos”. Garcia lembrou que o presidente Donald Trump anunciou que reconheceria o grupo ANTIFA como terrorista, uma intenção que o americano expôs à luz dos protestos antirracistas que ele vem enfrentando nos Estados Unidos. A sigla é uma abreviação de antifascista, mas também remete a militantes europeus que lutavam contra o fascismo no século passado.
Garcia disse ainda ter apresentado um ofício à Procuradoria Geral da República (PGR) juntamente com o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e o deputado estadual Gil Diniz (PSL-SP) para investigar parlamentares que incentivam “grupos de extermínio dos conservadores”, num jogo de palavra duro que sugere o cerceamento de vozes conservadoras, mas traz o peso de remeter a grupos de extermínio que existem clandestinamente para matar supostos bandidos.
A associação da lista que circulou nos WhatsApp de opositores de Bolsonaro com o tal dossiê do deputado Garcia foi imediata. A repercussão também, com deputados de esquerda acusando no início o deputado bolsonarista nas redes, e coletivos de advogados aconselhando os integrantes da lista a se organizarem para se proteger juridicamente. Garcia, então, gravou um novo vídeo na quinta, em que negou energicamente que tivesse algo a ver com o vazamento de perfis. “Eu não vazei dados de ninguém! Dossiê nenhum!”, disse ele, sugerindo que quem vazou o tal dossiê que circulou entre quarta e quinta possam ter sido os mesmos “criminosos” que vazaram seus dados dias atrás. O deputado teve dados pessoais, inclusive de familiares, expostos por um grupo autointitulado Anonymous Brasil, que por sinal, se autodenomina antifascista.
A tal lista parecia uma resposta à intimidação que ele mesmo sofreu. Mas não se livrou de um pedido de cassação de mandato por parte de outros deputados de oposição que viram em seu gesto de estimular denúncias e exibir um suposto dossiê como uma maneira de intimidar ativistas. “Isso é desespero”, diz a deputada estadual Erika Hilton, da bancada ativista.
Garcia (que é investigado no inquérito das fake news conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes no Supremo, assim como Gil Diniz) chegou a sugerir que o arquivo de nomes que circulou por Whatsapp não era o mesmo que ele tinha. Mas algumas pessoas apontam nomes que coincidem com a lista do Whatsapp quando congelam as imagens distorcidas que o deputado exibiu em um de seus tuítes. Garcia fica no limite da legalidade. Se ele de fato tiver exposto pessoas inocentes, estará cometendo crimes de calúnia e difamação, explica o advogado André Wlodarczyk, de Curitiba, que identificou 12 pessoas da capital paranaense na lista. Ele representa esse grupo e estuda uma ação coletiva para protegê-lo. “São muitos jovens ali, muitas pessoas têm estúdios de tatuagem, por exemplo”, comenta Wlodarczyk, que deve apresentar uma denúncia junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo para apurar detalhes dessa lista intimidatória. Somente autoridades e o deputado poderão responder se o tal dossiê que ele anunciou é diferente do arquivo que chegou ao Whatsapp dos que se viram na lista que chegou a eles.
Constam nesse listado pessoas ligadas ao universo da música, heavy metal e punk, que inclusive seguem páginas antifascistas. Um ou outro aparece em foto com camisetas de Lula ou do PT. Um jovem que cursa doutorado não tem ideia de como foi parar ali. Há também quem estudou ciências sociais, curso alvo de discurso da extrema direita no Brasil. Uma pessoa no tal dossiê exibe um soco inglês. Nada que deveria chocar políticos bolsonaristas que exibem fotos com armas, tal qual o presidente e seus filhos.
Mas há também pessoas que não se encaixam nesse perfil e que já haviam sido alertadas no ano passado de uma tal lista de antifascistas. “No final do ano passado, não sei de que forma, cai num grupo de WhatsApp em que as pessoas começaram a se alertar sobre essa tal lista em que eu também estaria incluído”, lembrou um rapaz, que trabalha em jornada estendida e “sem tempo para redes sociais. Nunca fui a um protesto”, conta.
Uma das hipóteses levantadas entre eles é que a tal lista começou a ser feita em consonância com os protestos do Chile que começaram em outubro, e geraram uma ruptura social no país, só interrompida durante a pandemia de coronavírus. Naquele momento, integrantes do Governo, o deputado Eduardo Bolsonaro e o próprio presidente, fizeram ilações com respostas enérgicas. “Se eles começarem a radicalizar do lado de lá, a gente vai ver a história se repetir. Aí é que eu quero ver como a banda vai tocar”, disse Eduardo, no final de outubro, em mais uma declaração enviesada.
Bolsonaro reavivou as comparações com protestos no Chile esta semana, e passou a chamar os manifestantes pró-democracia de “terroristas”, mimetizando Trump, e colocando mais água na fervura entre apoiadores e deputados bolsonaristas. Logo após o protesto de domingo, três deputados do PSL do Rio de Janeiro tentaram emplacar um projeto de lei para tipificar os chamados antifas como terroristas.
Para a deputada Erika Hilton, esse clima coloca um peso ainda maior no ato deste domingo. “Vai ser um divisor de águas”, acredita ela, uma arena onde vai se medir a força dos extremistas que querem impedir a manifestação, e a capacidade dos grupos antifascistas de resistir à tentação de brigar. Um vídeo de uma pessoa identificada como Torres, vestido de farda, convocava “lutadores de artes marciais, policiais de reserva, intervencionistas”, para chegar na Paulista, na frente da FIESP ao meio-dia contra os antifascistas. O ato terá a participação de movimentos sociais, que se viram provocados a reforçar a presença depois das cenas do último final de semana, e para não se deixar intimidar pelos rótulos extremados. “Foi um ato pacífico até as represálias da polícia depois das provocações de militantes”, lembra ela.
Mesmo quem não vai no ato e se viu na lista decidiu falar abertamente sobre o assunto para não sucumbir ao clima de medo. “Nós não cometemos crimes. Defender igualdade de direitos, a democracia não é um delito”, diz Paula Baldassarri. Karina sente o mesmo. “Cansei de ter medo. É assim que a extrema direita cresce”. avalia ela. Pelo sim pelo não, está em contato com outras pessoas para tomar medidas legais caso haja desdobramentos com a eventual publicidade da lista.
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