O trabalhador brasileiro como suco e bagaço da laranja mecânica
O escritor gaúcho José Falero, cronista da precariedade, é meu guia neste retrato do desemprego no país de Bolsoguedes
Nunca falta ideia para lascar o trabalhador no Brasil. É uma fartura de capatazes com chicotes e relhos à espera dos lombos do exército de reserva.
Não acredito no que estou lendo, porém é isso mesmo: o governo Bolsoguedes vem aí com mais uma proposta de reforma trabalhista. Creia. Acham pouco o desmantelo que fizeram da pinguela para o futuro —tema do primeiro mandatário pós-golpe de 2016— até agora.
Bagaceira generalizada, pretendem fazer 330 alterações em dispositivos legais. A ideia agora é desconsolidar, se é que este verbo é possível, os restos mortais da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Não vai sobrar nem o bagaço do homem que virou suco, para lembrar o personagem do extraordinário Zé Dumont no filme de João Batista de Andrade —fita de 1981, jovens, corram ao streaming mais próximo dos dedos.
O mote principal é tornar o domingo um dia qualquer da semana, desprotegido de tudo ou hora extra. O domingo quase como uma nova segunda. Na maior cara de pau, dane-se o domingo de guarda. Desprotege o trabalhador, verbalizo de novo de forma esquisita, de reivindicar qualquer vínculo entre prestadores de serviços e aplicativos.
A exemplo de outras reformas, prometem bilhões de empregos. Corta para “Segunda-feira ao Sol” (2002), do diretor de cinema espanhol Fernando León Aranoa. Segunda é o dia mais triste para quem procura emprego. Você acorda e ronda a cidade. Você volta para casa com as feições de derrota impressas ao lado das rugas.
O sol dos recusados cega no retorno aos lares.
Você desce do ônibus, finge que não viu o vizinho na sinuca da esquina (este já deu por perdido) e o que dizer aos mais próximos, você não tem mais saco para relatar apenas que preencheu algumas fichas e espera um telefonema. Escuto a voz do meu tio Alberto Novais contando isso quando cheguei a SP, Parque São Rafael, ZL, chaminés da Petrobrás ao oeste da Sapopemba, Brasil dos anos 90.
Tem toda uma dramaturgia de humilhação no homem ou na mulher que voltam para casa sem nada feito. Não tem esse papinho de autoajuda ou da palavra resiliência, um vocábulo que cai muito bem para anúncio publicitário de banqueiro esperto.
Estamos de volta aos anos 1980. Reparo em mim mesmo e outros colegas da pensão de Lampinha, grudados ao orelhão da esquina na rua das Ninfas com a Progresso, no Recife dos anos 1980. Todos esperando algum retorno das firmas.
Só ligavam para oferecer enganações como vagas de revendedores de filtro de água com ozônio, moda à época. Tentei por algum tempo, mas era péssimo no ramo, minha cara de matuto não passava confiança aos bebedores do precioso líquido. Comissão zero. Óbvio que um dia veio a sorte grande: datilógrafo no crediário da Mesbla. Fiquei pouco, mas foi lindo, obrigado irmão Luiz Paz pela dica. Ainda te devo muitos chopes no Mustang, o bar ao lado da loja de departamentos mais incrível do planeta.
Não acredito que os caras preparam uma nova reforma trabalhista pós-pinguela suicida do Temer. Talvez o sonho seja chegar a algo pré-1888, caro gênio abolicionista Luiz Gama.
Agora sou obrigado a abrir o livro de crônicas de José Falero. Página 16 do “Mas em que mundo tu vive?” (editora Todavia).
Um primo de Falero, sem equipamento que preste, apenas um martelinho de merda, está lá tentando demolir umas paredes de um casarão em Porto Alegre. Pede desculpa pelo ritmo lento, afinal de contas, com aquele martelinho de merda iria demorar pra cacete.
No que a chefia, o Alemão, diz ao operário: “Amanhã vem a retroescavedeira e derruba isso aí em um minuto. Eu só pedi para vocês irem derrubando para não ficarem sem fazer nada o dia inteiro”.
Resquício da escravidão é pouco para explicar. Agora vou gastar todo meu exibicionismo de leitor-matuto, se liga, bora para “As ideias fora do lugar” (Companhia das Letras), do crítico Roberto Schwartz:
“Fernando Henrique Cardoso observa que “economia” não se destina aqui, pelo contexto, a fazer o trabalho num mínimo de tempo, mas num máximo. É preciso espichá-lo, a fim de encher e disciplinar o dia do escravo. O oposto exato do que era moderno fazer. Fundada na violência e na disciplina militar, a produção escravista dependia da autoridade, mais que da eficácia”.
Falero não é apenas o grande cronista do trabalho precário no Brasil. É também o ficcionista dessa parada. No seu livro “Os Supridores” narra a história de dois guris, Pedro e Marques, que abastecem as prateleiras do supermercado Fênix e tentam as virações possíveis, picarescos quais os melhores Malasartes, para seguirem no jogo bruto.
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