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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Os memes poderão salvar um país do fascismo?

É preciso convencer esses 65% do Chile do qual nada sabemos para não votar em um presidente de ultradireita, e talvez a melhor ferramenta para consegui-lo seja fazê-los rir com as piadas

Um partidário de José Antonio Kast, em Yumbel, Chile, em 23 de novembro.
Um partidário de José Antonio Kast, em Yumbel, Chile, em 23 de novembro.JUAN GONZALEZ (Reuters)

Na tarde de segunda-feira, após observar durante um dia inteiro, e detalhadamente, qual sentimento me provocava o resultado das eleições no Chile, às 23h57, por fim, pude decifrar. Ou melhor, saboreei: amargo. “Acabo de compreender cabalmente o termo amargura”, disse a mim mesma, com a luz da luminária apagada, e em voz alta. Não foi gostoso. E também não foi somente um mau bocado, e sim uma intuição; vai durar. Principalmente, foi triste que não se tratasse de tristeza.

“Amargura, caramba, sempre penso nela associada ao tempo”, me responde um amigo chileno que mora em Frankfurt. “Isso!, isso mesmo”, repeti no WhatsApp: “Amargura=Velhice”.

Me explico: Kkst, o candidato da ultradireita radical (não são minhas palavras, e sim as do jornal de negócios alemão Handelsblatt), venceu o primeiro turno e durante os próximos dois dias a situação no Chile roubou toda a minha atenção. Eu, que na semana passada dei um show com um ataque de tosse e riso em plena apresentação de meu romance em Córdoba. Antes tinha preocupações românticas (vontade de amar, e falar sobre o amor), também queria tingir o cabelo de laranja, conhecer Alhambra e um bar chamado Alexander. Agora tudo parece frívolo: não gosto de nada, não posso ser feliz, não devo sorrir. Principalmente eu, que estou morando na Europa há 11 meses. De modo que sequer posso me liberar em ressentimento. E como fazer o trâmite do visto foi um inferno, também não tem gosto de culpa.

Saio para correr e me pergunto se deveria voltar e enfrentar o fascismo. Acabam de me convidar para uma feira em Bío Bío e lembro de Bolaño preso em Concepción. “Mas Bolaño foi lutar pelo projeto da Unidade Popular, por Allende. Teve o azar de chegar dias antes do golpe de Estado. E também não ficou”. Exponho meu debate mental a vários amigos:

“Você não sabe o que vem por aí”, me alerta A, de 50 anos (não chega a ser um baby boomer, mas é um dos meus amigos mais velhos). “Uma ditadura. Pessoas vão desaparecer”.

“Este é um país de velhos”, me diz Diego, um dos mais jovens. “Se já atiravam nos olhos com Piñera, agora sim estarão descontrolados”.

“Não volte ao Chile, fique aí”, todos os outros me repetem. E mais do que alívio pela distância-proteção, se sente a falta. Porque a decisão estava tomada há tempos. Eu não pensava em voltar.

Nessa mesma noite sonho que um ex-revolucionário vem me buscar em Granada. Mas não é um pesadelo: o ridículo e cômico da situação é maior do que a angústia.

Então, algo muda: quando acordo circulam vários memes e tuítes espirituosos a favor do candidato do Aprovo Dignidade: Boric com Britney Spears; Keanu Reeves; Björk, Sailor Moon (primeiros sorrisos).

“Podem me chamar pelo meu nome e por maluquinha doida para votar em Boric no segundo turno, que é a responsabilidade que tenho por escolha popular” (uma gargalhada).

As piadas como estímulo, faz sentido. O primeiro é levantar a moral. O segundo: procurar formas de compreensão entre nós.

“A esquerda está tão dividida que não iríamos chegar a lugar algum argumentando seriamente, mas o humor é como um idioma universal ou algo assim”, digo a um amigo que faz stand up comedy.

A semana avança e novas prioridades surgem: o fundamental é sair da bolha e convencer os outros 65% do país, do qual acabamos de perceber que não sabemos nada. A estratégia aponta intuitiva e rapidamente às mães: encher os WhatsApp familiares dos que nunca participamos com mensagens de bom dia com uma imagem de Piolín e Chayanne pedindo para votar em Boric.

Por sorte, eu não preciso convencer a minha. Conseguiu trabalho como recepcionista em uma clínica há pouco, e nessa noite me conta que quando Kkst foi tomar a terceira dose da vacina todas as suas colegas se esconderam. “E quem vai atender esse idiota? Porque eu não vou!”.

Imagino a cena, dou risada. Na sequência, aprecio detalhadamente o sabor: doce e ácido outra vez.

É possível que o passarinho amarelo da Looney Tunes, tão doce como gozador, consiga nos ajudar com nossas mamães (“Mããee, esse gato quer nos matar mesmo!”). Mas o humor poderá salvar um país do fascismo?

Os decálogos que surgem nas redes sociais para convencer os indecisos aconselham a não usar o termo “fascismo”. Sigo o conselho, e também continuo compartilhando memes. Acho que seu humor é cada vez mais sofisticado e que já não animam somente, e sim inspiram outros a pensar criativamente: diversificar as narrativas discursivas da campanha.

Meu amigo que faz stand up insiste:

“Haha é verdade que o país está tão dividido que precisamos de um idioma comum. Mas eu penso nesses memes feios, capturas de tela de vídeos sem graça do YouTube no Android. Como entrar aí?”.

Revejo o filme Espantalho (1973). Um Al Pacino piadista propõe a verdadeira função dos espantalhos: “Veja, o fazendeiro coloca um boneco com chapéu e cara engraçada. Os corvos riem e dizem, tudo bem, o fazendeiro Jones é um bom sujeito, nos faz rir, não vamos incomodá-lo”.

Talvez esse seja o desafio agora: fazer com que os corvos riam.

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