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Coluna
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Poderia uma mulher chegar a ser papisa?

Este pontificado está dando claros sinais de que deseja voltar às origens da Igreja, e nesse primeiro cristianismo as mulheres tiveram um poder importante

Mulher segura crucifixo durante a oração do Angelus conduzida pelo papa Francisco em 25 de outubro na praça de São Pedro (Vaticano).
Mulher segura crucifixo durante a oração do Angelus conduzida pelo papa Francisco em 25 de outubro na praça de São Pedro (Vaticano).VINCENZO PINTO (AFP)
Juan Arias
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O papa Francisco iniciou, desde que assumiu o pontificado, uma renovação lenta e constante da Igreja, para escândalo da ala mais conservadora, que a queria parada no tempo justo quando o mundo está em profunda evolução. Poderia Francisco revisar a forma de escolher os cardeais, tal como hoje está no Direito Canônico, para que uma mulher pudesse chegar a cardeal e daí ter a possibilidade de ser eleita papisa?

Teoricamente sim, porque o Direito Canônico é uma legislação da Igreja que qualquer papa pode mudar, pois não se trata de dogmas de fé, nem de matérias imutáveis na Igreja. E, pelo que estamos vivendo, este pontificado está dando claros sinais de que deseja voltar às origens da Igreja. E nesse primeiro cristianismo as mulheres tiveram um poder importante. As coisas só mudaram quando o apóstolo Paulo de Tarso hierarquizou a Igreja de forma que só os homens pudessem exercer o sacerdócio.

Nas pinturas do século II encontradas em algumas catacumbas de Roma aparecem mulheres diaconisas, o que supõe que poderiam chegar ao sacerdócio. É inconcebível o cristianismo sem levar em conta o papel preponderante da mulher na Igreja então nascente.

Logo depois de ser sagrado pontífice, o papa abordou o espinhoso tema da presença feminina na Igreja. Uma de suas afirmações mais fortes foi a feita à revista Civiltà Cattolica : “A Igreja não pode ser ela mesma sem a mulher”. E assim que foi eleito declarou que “falta à Igreja uma profunda teologia da mulher”. E reservadamente expressou o desejo de escolher uma mulher como cardeal.

Certamente, Francisco gostaria de acelerar os tempos para fazer mudanças mais profundas na Igreja, mas sabe também que está sob o olhar de uma ala conservadora da Cúria Romana que seu antecessor, o papa alemão Joseph Ratzinger, chegou a qualificar como “lobos”. São aqueles que hoje se dizem à espera do retorno à Igreja de um “papa de verdade”, já que não veem Francisco como tal.

E é verdade que o pontífice argentino, já desde o conclave que o elegeu, dava sinais de que pretendia impor uma profunda transformação do pontificado. E assim, na sua primeira aparição no balcão da Basílica de São Pedro, descreveu-se não como papa, e sim como “bispo de Roma”, e antes de dar sua tradicional bênção aos milhares de fiéis ali presentes lhes pediu que eles o abençoassem. Toda uma heresia para quem acha que a Igreja é imutável.

Naquele dia, Francisco, em vez de se dirigir aos palácios do Vaticano, residência dos papas, foi morar numa modesta pensão em Roma, onde ainda continua, ao mesmo tempo em que se despojou de todos os ouropéis que os pontífices levavam até então, ficando só com sua batina branca.

Um papa assim, que não quer nem sequer ser chamado desse jeito, é capaz de conseguir uma maior transformação da Igreja que tantos gostariam que fosse imutável e eterna. Ele tem pressa, como confessou a um bispo, mas sabe ao mesmo tempo que precisa respeitar os tempos e agir em doses homeopáticas para que a Igreja conformista não se subleve.

E assim está fazendo. Pela primeira vez está nomeando mulheres para altos cargos dentro da Cúria, algo até ontem impensável. Conseguiu também que pela primeira vez os cardeais não sejam em sua maioria europeus, como sempre foi. Saiu em busca de cardeais na periferia da Igreja. Ele mesmo, ao se apresentar aos fiéis no dia de sua eleição, lhes disse significativamente: “Venho de muito longe”. Em 25 de outubro, Francisco criou 13 novos cardeais, e alguns surpreenderam, como Cornelius Sim, bispo de Brunei, um país muçulmano onde a Igreja Católica é proibida, e Antoine Kambunda, sobrevivente do genocídio de Ruanda, no qual toda a sua família morreu.

Com o papa Francisco, pela primeira vez os cardeais europeus são apenas 40%. Quando ele chegou eram 60%, e já no passado já somaram 98,9%. Agora, o próximo passo seria mudar a forma de escolher os cardeais, que em sua origem eram seus conselheiros, todos da diocese de Roma. E, com efeito, o papa não é mais que o sucessor do apóstolo Pedro, que foi o primeiro bispo de Roma.

Poderia então o papa alterar as coisas para que as mulheres possam entrar no colégio cardinalício, hoje encarregado também de escolher o novo papa em um conclave secreto? Não é impossível dogmaticamente, já que o cardinalato é um título puramente honorífico, e por si só não obriga a que todos sejam bispos ou sacerdotes. Já houve cardeais laicos. O que ocorreria, entretanto, se uma mulher fosse criada cardeal, chegasse a um conclave e fosse eleita papisa? Como o papa é o bispo de Roma, deveria ser sagrada bispa, algo que hoje é impossível segundo o Direito Canônico, que exige que os cardeais sejam homens.

Seria, entretanto, a fórmula para que nesse caso hipotético de que uma cardeal mulher chegasse a ser eleita papisa, tivesse que ser sagrada bispa. Seria uma fórmula indireta de fazer a mulher chegar ao sacerdócio, que é um dos pontos mais discutidos na Igreja, a única instituição do mundo onde hoje se nega à mulher alcançar ao topo da hierarquia. Hoje, até no Exército uma mulher pode chegar a general. Na Igreja, a mulher não pode hoje ser nem diaconisa, que é o grau anterior ao sacerdócio. Francisco sabe que isso contraria o que foi a primeira Igreja.

O machismo da Igreja sempre procurou mil subterfúgios para que a mulher não pudesse ter poderes sacerdotais. O maior deles é que Jesus nunca teve uma mulher como apóstola, e, portanto, elas não poderiam chegar ao sacerdócio. Esquecem-se, entretanto, de que foi uma mulher, Maria Madalena, provavelmente a esposa de Jesus, a primeira testemunha da Ressurreição. Foi a ela a quem Jesus pediu que avisasse o apóstolo Pedro de que ele continuava vivo. São Tomás de Aquino, doutor da Igreja universal, morreu sem entender como Jesus pode ter aparecido já ressuscitado a uma mulher e não a um apóstolo, quando naquele tempo as mulheres não podiam nem ser testemunhas em um tribunal.

Hoje conhecemos a grande influência que Madalena exerceu na formação da Igreja, onde no princípio a Eucaristia era celebrada nas casas das mulheres, e foram elas na verdade que difundiram o primeiro cristianismo.

Tudo isso o papa Francisco sabe, e por isso gostaria de revisar toda a teologia para dar finalmente à mulher os direitos dos quais foi despojada, para que a Igreja, que não é celestial, e sim humana, possa caminhar no mesmo passo das grandes transformações de nossa sociedade.

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