Fazendo ciência na sala de estar em plena pandemia e encontrando o improvável
Mais nova adição ao time de colunistas do EL PAÍS, Miguel Nicolelis revela os bastidores da descoberta que pode ajudar a combater a covid-19 no Brasil
Quando perguntando por um jovem físico como ele havia chegado à sua revolucionária teoria da relatividade, enquanto trabalhava como um anônimo revisor de patentes, num obscuro escritório do governo suíço, em Berna, o grande Albert Einstein, do alto da sua incomparável humildade e simplicidade, costumava dizer que tudo fora muito simples.
Bastou um pouco de papel, um lápis bem apontado, alguns dias observando o relógio da estaç...
Registre-se grátis para continuar lendo
Quando perguntando por um jovem físico como ele havia chegado à sua revolucionária teoria da relatividade, enquanto trabalhava como um anônimo revisor de patentes, num obscuro escritório do governo suíço, em Berna, o grande Albert Einstein, do alto da sua incomparável humildade e simplicidade, costumava dizer que tudo fora muito simples.
Bastou um pouco de papel, um lápis bem apontado, alguns dias observando o relógio da estação de trem da cidade e um pouco de reflexão solitária, entre a execução de uma ou outra sonata de Mozart no seu violino favorito. Nas palavras do meu inesquecível orientador —e pai da neurociência brasileira—, professor César Timo-Iaria, na sua modéstia infinita, Einstein só tinha deixado de fora desta sua equação do limite humano da criatividade um dos ingredientes mais essenciais de toda descoberta científica transformadora: a perda da noção do tempo.
O que meu eterno mestre queria dizer é que, sem a possibilidade de mergulhar cegamente no abismo das abstrações mentais e se perder nos seus delírios criativos, sem hesitação ou temor, fica difícil fazer ciência de verdade. É necessário tempo para que o “suco de miolo”, como o professor Cesar definia o ato da criação, condense, cristalize e, subitamente, emerja diretamente das profundezas dos sulcos e giros do Verdadeiro Criador de Tudo —o cérebro humano— para transformar-se num objeto de admiração e contemplação do mundo exterior.
Que o diga o grande Isaac Newton que, confrontado com o fechamento temporário do Trinity College em Cambridge em 1665, devido à epidemia de peste bubônica que assolou a Inglaterra entre 1965-1966, refugiou-se na sua residência de campo em Woolshorpe. De lá ele só emergiu depois de produzir os três volumes da sua obra-prima, Philosophia Naturalis Principia Mathematica, que não só estabeleceu a famosa lei da gravidade mas basicamente inaugurou a tradição que leis matemáticas geradas na mente humana poderiam oferecer uma explicação para como todo o Cosmos funciona. Se o ócio forçado do nosso estimado Sir Isaac Netwon não o convenceu, caro leitor, que tal os 20 anos que Charles Darwin precisou para colocar no papel —usando uma pena mais afiada que o mundano lápis Einsteano, verdade seja dita— a sua teoria da seleção natural das espécies, inicialmente concebida em 1838 e só revelada para o mundo em 1958?
Qual pesquisador brasileiro teria hoje o luxo de tirar sequer seis meses simplesmente para pensar e refletir sobre uma teoria, um grande achado, ou apenas seguir uma fagulha de intuição, em meio à todas as infinitas, infindáveis e improdutivas reuniões de departamento, comissões de todas as cores e variedades, preenchimento de papelada administrativa e de compliance? Sem falar na contínua elaboração de projetos de pesquisa em busca de parcas fontes de recursos destinadas à ciência, aulas, defesas de teses e exames, extensão comunitária? Eu já posso ouvir um diretor de uma contemporânea Faculdade de Medicina americana respondendo assim para um pedido do nosso querido Sir Charles Darwin: “20 de sabático, dr. Darwin? O senhor perdeu a sua mente? Forget about it! [esqueça isso!] Volte lá para o seu cubículo e escreva mais uma pilha de trabalhos que ninguém vai ler e, no intervalo, consiga mais dinheiro do NIH (o Instituto Nacional de Saúde dos EUA) para nós gastarmos, on the double!”
Mundo de joelhos
Todavia, o que ninguém contava é que, de lugar nenhum, sem aviso prévio, e-mail ou mensagem de WhatsApp, o mundo seria tomado e posto de joelhos pela maior pandemia a varrer o planeta em um século. Subitamente, o tempo que havia sido partido artificialmente em meses, semanas, dias, horas minutos e segundos, escravizado pelo mundo digital que nos circunda, rebelou-se. Desvencilhou-se das suas amarras para voltar às suas origens contínuas, analógica. Exatamente da forma como a mente dos nosso ancestrais do Paleolítico Superior o pariu. Livre novamente, o tempo não perdeu tempo e passou a se esticar, como num passe de mágica relativístico, voltando a ser um enorme Amazonas: sem começo nem margens, um verdadeiro oceano sem fim.
Tendo sido pego em Terra Brasilis bem no início da tsunami criada pela pandemia da covid-19, eu me vi convidado e compelido a aceitar, por um dever cívico hoje meio fora de moda, a missão de coordenar o recém-criado Comitê Científico de Combate ao Coronavírus (o C4, como nós carinhosamente o apelidamos) do Consórcio de governadores do Nordeste brasileiro. Desde o final de março, em parceria com o ex-Ministro da Ciência e Tecnologia Sergio Rezende e um grupo de grandes cientistas e profissionais de saúde de todas as idades e origens, todos patriotas da gema —sim, eles ainda existem no Brasil de 2020—, eu passei a navegar nas águas revoltas deste novo tempo analógico, durante boa parte dos meus dias e noites. Muitos estranharam que um neurocientista fosse convidado a coordenar um comitê focado no combate a uma pandemia. Poucos, porém, sabem que nos primeiros quatros anos da minha carreira científica, ainda na Faculdade de Medicina da USP, estudei intensamente a epidemiologia das infecções hospitalares por bactérias resistentes a antibióticos. São estudos que resultaram em várias publicações internacionais. “Back to the past” [De volta ao passado] seria o nome que eu daria a este momento.
Deste o início, o foco obsessivo e único do C4 foi oferecer sugestões, recomendações e novas estratégicas de combate aos governadores do Nordeste para que eles pudessem mitigar, no limite do humanamente possível, o sofrimento e as mortes dos nossos irmãos e irmãs nordestinas e, se possível, de todos os brasileiros. Num segundo momento, a nossa missão era identificar qualquer fragilidade, mínima que fosse, do nosso inimigo existencial: o SARS-CoV-2. E atacá-lo de frente, com tudo que a ciência pode nos oferecer de melhor, da mesma forma como ele nos atacou: sorrateira mas decisivamente, como é toda batalha de vida ou morte!
Casos que se espalham
Para tanto, em paralelo ao trabalho de coordenação do C4, eu passei a colaborar intensamente com a fina flor da juventude científica brasileira. Fazem parte desse grupo, entre outros, os pesquisadores e professores universitários Rafael Raimundo (Universidade Federal da Paraíba, Campus IV), Pedro Peixoto (Instituto de Matemática e Estatística do Departamento de Matemática Aplicada da USP) e Cecília Andreazzi (do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos silvestres, do Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz).
Como primeiro passo, nós analisamos o espalhamento da covid-19 pelas estradas federais brasileiras, partindo da cidade de São Paulo —a maior espalhadora de casos do país— e de todas as outras capitais da costa do país. A seguir, veio a descoberta do chamado efeito bumerangue: a migração da covid-19 para o interior brasileiro em enormes ondas de pessoas infectadas, transportadas sem nenhum entrave pelas nossas rodovias, apenas para retornar para as capitais, também em grandes massas. Agora, no entanto, na forma de pacientes graves, lutando pelas próprias vidas, em busca de melhores cuidados médicos e de leitos de UTI inexistentes no interior do país. Noites e noites a fio, eu acompanhei as estatísticas de todos os Estados do país, números sempre em disparada. Por trás de cada dígito, de cada estatística, havia um rosto em agonia, uma vida se esvaindo lentamente e, com ela, um livro se fechando, para jamais ser escrito novamente em toda a história futura do Cosmos.
E no meio deste caos de gráficos e mais gráficos, na madrugada de 21 para 22 de agosto, perdido no meu oceano de tempo analógico, bem no meio da República Livre da Pompéia, eu estava tentando entender uma minúscula e teimosa discrepância nas nossas estimativas teóricas do espalhamento da covid-19. Por alguma razão misteriosa, a doença teimosamente evitara penetrar, por meses a fio, no oeste do Paraná, no Mato Grosso, no Mato Grosso do Sul e também nos sertões nordestinos de Euclides da Cunha, bem como nos de Guimarães Rosa. Decidi então fazer uma pausa. Ainda com a pulga atrás da orelha, resolvi simplesmente dar uma passada de olho numa pilha de Boletins Epidemiológicos do Ministério da Saúde —o tipo de diversão que só um cientista consegue ter às 3 da manhã de uma sexta-feira paulistana. Devidamente acompanhado por Elton John interpretando Rocket Man, eu deitei no meu sofá para revisar alguns gráficos, como forma de encontrar alguma forma de sono.
Os momentos que se seguiram jamais sairão da minha memória enquanto eu viver. Bem no meio do Boletim número 31, referente à semana epidemiológica 29, no lado esquerdo da Figura 2, um simples mapa do Brasil capturou minhas retinas cansadas. Bastou um olhar! E na minha frente, de repente, estava exposta de forma explícita a resposta que eu buscava há seis meses, explodindo instantaneamente na minha mente, como um gol na final da Copa do Mundo. Ou melhor, como o chute inaugural da Copa do Mundo deferido por um jovem brasileiro paraplégico, usando o primeiro exoesqueleto controlado pela mente humana, num campo de futebol da sua terra natal. Faltou tudo naquele nanosegundo. Ar, vinho, alguém para abraçar e chorar junto. Faltou meu pai, minha mãe, minha avó Lygia, meus filhos e todos os meus amores, alguns em quarentena bem perto de mim. Indubitavelmente, bem no instante de uma das maiores emoções da minha vida científica de 38 anos, só havia eu e o Big Bang para celebrar! Ah sim, e um computador!
Em segundos, eu estava na frente deste meu fiel companheiro, testemunha ocular do meu Ovo de Colombo, bem no meio da sala de estar transformada em laboratório e quartel-general do C4 há meio ano, comparando aquele mapa do Brasil —achado por acaso num boletim que ninguém lê— e o mapa oficial da distribuição dos casos de covid-19. A única coisa que me veio à mente gritar quando as duas imagens foram postas uma do lado da outra foi: BINGO!
Não, não foi uma nova teoria da relatividade que eu descobri naquela madrugada de agosto, na Pauliceia desvairada. Muito menos uma nova teoria da seleção natural. Não, foi apenas uma luz no fim no túnel. Fugidia, tênue, mas ainda assim uma clara fonte de esperança. Algo que, se for comprovado, expõe uma clara fraqueza do nosso inimigo. Uma fraqueza que o fez se deter nas fronteiras do Mato Grosso do Sul e do oeste do Paraná ao se confrontar com um rival de peso. Um potencial novo plano de ataque nesta nossa guerra. Uma nova arma que o tempo e mais pesquisas dirão se vale a pena investir e colocar em campo.
Basicamente, o que descobri foi que o mapa do Brasil contendo a distribuição dos casos de dengue em 2020 era totalmente complementar ao mapa dos casos de Covid-19. Naquelas regiões onde houve muita dengue no biênio 2019-2020, o SARS-CoV-2 parecia estar tendo dificuldades de penetrar e se proliferar à vontade, como ele o fizera em todas as capitais da costa brasileira e em boa parte da região Norte durante os primeiros três meses da pandemia no país.
De fato, quando consegui me refazer do susto e pude começar a fazer análises mais detalhadas, foi possível ver que, em estados onde a dengue campeou solta nos últimos 18 meses, a incidência de casos e mortes de covid-19 tinha sido bem menor, bem como fora mais lenta a velocidade de acumulação dos casos nos territórios que o nosso conhecido Aedes aegypti, o mosquito transmissor da dengue, havia conquistado para si. Foi a descoberta desta possível correlação competitiva inversa entre os dois vírus – da dengue e da covid-19 – que agora oferecia, pela primeira vez, uma potencial explicação para o atraso no crescimento das curvas de casos do novo coronavírus nas regiões Centro-Oeste e Sul do Brasil.
De acordo com a minha hipótese, os mais de 3,5 milhões de casos de dengue registrados no Brasil em 2019-2020 haviam criado um espécie de paredão de proteção contra o novo coronavírus. Para meu deleite, em questão de minutos eu descobri que estudos mundo afora já haviam relatado casos de pacientes que tiveram dengue em 2019 e cujo soro, colhido no ano passado, agora tinha dado um resultado falso-positivo para coronavírus! Ou seja, alguém já havia visto que o soro de pacientes que tiveram dengue continha algo que reagia contra o nosso inimigo atual, o SARS-CoV-2. Apesar de estranharem os resultados, estes colegas não suspeitaram que a infeção por dengue poderia estar oferecendo algum tipo de imunidade parcial para o novo coronavírus. Daí a justificativa para o meu Bingo! Pois, se futuros estudos mostrarem que esta minha hipótese é correta, uma possível imunização com uma vacina segura e eficaz contra a dengue – que aliás já existe - poderia conferir um certo grau de imunidade cruzada para o SARS-CoV-2, da mesma forma que a vacina contra a tuberculose (BCG) parece conferir para alguns vírus.
Enfim, uma gota de esperança.
O que convenhamos, no Brasil de 2020, já é algo para se comemorar da sacada do apartamento aos berros de BINGO, como eu fiz, acordando todos os vizinhos.
E, claro, no meio dos berros, agradecer aos deuses gregos pela ressurreição do tempo analógico.
Miguel Nicolelis é um dos nomes com maior destaque na ciência brasileira nas últimas décadas devido ao trabalho no campo da neurologia, com pesquisas sobre a recuperação de movimentos em pacientes com deficiências motoras. Para a abertura da Copa de 2014, desenvolveu um exoesqueleto capaz de fazer um jovem paraplégico desferir o chute inicial do torneio. Incluiu recentemente à sua lista de atividades a participação no comitê científico criado pelos governadores do Nordeste para estudar a pandemia da covid-19. Twitter: @MiguelNicolelis