Comecemos a sair de outro confinamento: o da família como conhecemos
Quero nos imaginar como parte de poderosas colmeias de criaturas liberadas que dependem umas das outras para sua subsistência
Um coronavírus é uma família inesperada, a união de organismos insignificantes e interdependentes, os vírus, que se agrupam a partir de outros “agentes” igualmente incompletos, se encaixam e se hibridizam para se propagarem e subverter a ordem.
E daí que essa é a grande lição a aprender? Porque essas famílias se parecem com muitas que conheço: formadas por seres tidos como abjetos, improdutivos, marginais, mas que em conjunto agem de maneira infecciosa sobre a família tradicional que conhecemos e, além do mais, querem aboli-la: essa família do mandato bíblico e biológico, classista, despolitizada, nada diversa. Essa cujo fim é a acumulação e a propriedade privada, e que tem sido tão útil ao controle social.
A quarentena foi apenas a extensão dessa sala de pânico, dessa estrutura chamada família que te encerra com agressores. Transforma sua casa em tele-escritório, o núcleo a partir do qual continuar sendo tão produtivos quanto o sistema deseja e pedir pizza a um migrante explorado. Ou te elimina das ruas e das lutas, que são outras formas de nos irmanar para além do parentesco.
Se sairmos dessa, temos duas opções. Ou transitamos para esse enganoso “novo normal” e, com o novo poder operando, o grande irmão abrirá mais do que nunca o obturador sobre nossos corpos, nossas camas, nossos ninhos, nossoxs filhxs. Ou mudamos de estratégia e, ao sair da quarentena, começamos a sair desse outro confinamento: o da família como a conhecemos.
Quero nos imaginar como parte de poderosas colmeias de criaturas liberadas que dependem umas das outras para sua subsistência; novas unidades familiares escolhidas para coletivizar cuidados e recursos, apoiar-se mutuamente para autogerir a sobrevivência do enxame. Serão as dissidências, que há muito se aninham na diáspora, tentando viver radicalmente, apesar do estigma, que voltarão a nos lembrar da urgência de viralizar o sonho da tribo.
Gabriela Wiener é escritora peruana, poeta e jornalista. Autora de, entre outros, ‘Sexografías’ (Foz) e ‘Dicen de Mí’ (Esto no es Berlin). O artigo faz parte da série ‘O futuro depois do coronavírus'.
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