O mundo não pode voltar à “normalidade”

Numa data marcada pela celebração da ressurreição, o vazio das igrejas escancara a necessidade urgente de um novo pacto social

Papa Francisco preside a Vía Crucis diante de uma praça vazia na Basílica de São Pedro.MASSIMO PERCOSSI (EFE)

Não são poucos os religiosos que apontam a ressurreição de Cristo como sendo o principal pilar da Igreja. Sem ela, argumentam, a fé cristã simplesmente não existe. Alguns chegam a apontar a Páscoa como um evento mais central na vida do cristianismo que o próprio Natal.

Mas, ao longo dos séculos, o Natal foi reinventado. O historiador Stephen Nissenbaum, em sua obra ...

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Não são poucos os religiosos que apontam a ressurreição de Cristo como sendo o principal pilar da Igreja. Sem ela, argumentam, a fé cristã simplesmente não existe. Alguns chegam a apontar a Páscoa como um evento mais central na vida do cristianismo que o próprio Natal.

Mas, ao longo dos séculos, o Natal foi reinventado. O historiador Stephen Nissenbaum, em sua obra The Battle for Christmas: A Social and Cultural History of Our Most Cherished Holiday, relata como a festa de final de ano foi secularizada e transformada praticamente em um feriado burguês. A festa ainda passou a se desenvolver de mãos dadas com um “novo” fenômeno: a ascensão de uma classe média a partir do século 19 e a celebração da infância.

Ainda que os tetos de supermercados sejam tomados por ovos de chocolate, a realidade é que a Páscoa e seu sentido de ressurreição não tiveram o mesmo destino do Natal. Em compensação, elas mantiveram o significado teológico preservado.

Neste ano, tal evento religioso ocorre em igrejas vazias, salvo em alguns rincões de radicais que se recusam a acreditar na ciência. O vazio não ocorre pela falta de fé, transferidas para redes sociais e grupos de WhatsApp. Mas por culpa de uma pandemia que levou religiosos e agnósticos a buscar um sentido para o momento de transição no planeta.

Enquanto bilhões de pessoas estão confinadas, governos buscam formas para sair da crise e retomar a normalidade. Descobrimos que existe um enorme vácuo de liderança e que, mesmo na crise definidora de nossa geração, políticos mergulham na busca por poder e influência global.

Lenta e descoordenada, a comunidade internacional eventualmente conseguirá chegar a um plano de ação. Provavelmente tardio. A incapacidade de agir de uma maneira mais eficiente custará muitas vidas. Já são mais de 100.000 mortos.

Mais cedo ou mais tarde, a retomada virá e pacotes avaliados em mais de 5 trilhões de dólares já foram anunciados por governos para resgatar suas economias e, em alguns casos, seus trabalhadores. A meta de todos: voltar à normalidade.

Mas será que convém ao mundo retornar a tal situação pré-pandemia?

A “normalidade" consistia em aceitar que cerca de 4 bilhões de pessoas não estavam cobertas por quaisquer medidas de proteção social.

A “normalidade” significava que 821 milhões de pessoas ―aproximadamente uma em cada nove pessoas no mundo― estavam subnutridas. Depois de anos de queda, a curva da fome voltou a aumentar no mundo desde 2015.

19,9 milhões de crianças não receberam vacinas durante o primeiro ano de vida. Em 40% dos países do mundo, existiam menos de 10 médicos por cada 10.000 pessoas.

Apenas 60% das pessoas em todo o mundo contavam com uma pia, com sabão e água, em casa. Ou seja, 3 bilhões de pessoas viviam sem instalações básicas para simplesmente lavar as mãos em casa.

Um terço de todas as escolas primárias carecia de água potável, saneamento e serviços de higiene. Uma em cada quatro centros de saúde no mundo não tinha água.

Como ousam, portanto, falar em voltar à normalidade?

Pacotes para sair ao resgate de milhões de pessoas serão necessários. Mas não darão conta de transformar às condições de base que deram, justamente, uma avenida para que a pandemia tomasse a dimensão que ganhou.

Abreviando a vida de milhares de pessoas e se transformando num espelho de um modelo de mundo esgotado, a morte anunciada em forma de números revelou a profunda vulneralibilidade do planeta. Ninguém mais pode dizer que tem um sistema de saúde sólido. Ninguém.

O inimigo invisível nos exige fazer perguntas incômodas. Não vamos precisar de pacotes de resgate. Mas um plano de ressurreição, que exigirá a humildade de líderes, planos, dinheiro e novas prioridades. Vai exigir coordenação entre países rivais, partidos rivais, ideologias rivais.

Enfim, um novo pacto social, capaz de conduzir o mundo a um compromisso para reduzir suas desigualdades. Caso contrário, estaremos apenas estabelecendo uma nova base para a próxima pandemia.

“Os seus mortos viverão. Os cadáveres do meu povo se levantarão”, diz um dos versículos do Livro de Isaias. “E a terra deixará que os impotentes na morte voltem a viver”.

Os impotentes na morte são os bilhões de seres humanos que, ainda que vivos, estão num limbo existencial permanente. Uma prisão perpétua, onde a única liberdade que têm é a de morrer.

Não há como aceitar voltar à “normalidade”.

Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.

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