_
_
_
_
Pandemia de coronavírus
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

O irmão Justiniano

Aprender a ler é o que de mais importante me aconteceu na vida. Agora que, por culpa do isolamento, leio do amanhecer ao anoitecer, aqueles dias voltam à minha memória com os fantasmas desvanecidos

Menina lê dentro de casa em Lavau-sur-Loire, na França, durante quarentena.
Menina lê dentro de casa em Lavau-sur-Loire, na França, durante quarentena.LOIC VENANCE (AFP)
Mario Vargas Llosa

Lembro com exatidão as dez quadras que existiam entre a casa dos Llosa, na rua Ladislao Cabrera, e o colégio La Salle. Eu tinha cinco anos e, sem dúvida, estava muito nervoso. Naquele dia, o meu primeiro no colégio, eu as percorri com minha mãe, que até me acompanhou à classe e me deixou aos cuidados do irmão Justiniano. Ele me apresentou aos que seriam meus amigos cochabambinos a partir de então: Artero, Román, Gumucio, Ballivián. O mais querido deles, Mario Zapata, o filho do fotógrafo que havia documentado todos os casamentos e primeiras comunhões da cidade, seria morto com uma facada, anos depois, em um bar de Cala-Cala. Como era o garoto mais pacífico do mundo, sempre pensei que sua horrível morte foi por defender a honra de uma jovem.

Mais informações
Faithful Evangelicals and supporters of Brazil's President Jair Bolsonaro pray in front the Alvorada Palace, amid coronavirus disease (COVID-19) outbreak, in Brasilia, Brazil, April 5, 2020. REUTERS/Adriano Machado
AO VIVO | As últimas notícias sobre o coronavírus
Cena do filme 'A tortura do medo', disponível no streaming Belas Artes a La Carte.
Guia de sobrevivência cultural na quarentena
Como você está lidando com tudo isso?

O Irmão Justiniano era um anjo na terra. Tinha cabelos brancos e olhos doces e afetuosos. Dávamos as mãos e com ele cantávamos e dançávamos rodas repetindo o abecedário e as conjugações e assim, brincando, seis meses depois sabíamos ler. O carteiro entregava a cada semana quatro revistas na casa, três argentinas e uma chilena: Leoplán, para o avô Pedro, Para Ti, lida pela avozinha Carmen, Mamaé, minha mãe e a tia Lala, e, para mim, Billiken e El Peneca. Esperava essas revistas como um maná do céu e as lia do começo ao fim, incluindo as propagandas.

Minha mãe tinha um professor de violão e era uma leitora empedernida. Ela me emprestou O Sheik e O Filho do Sheik, mas me proibiu de ler Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, de Pablo Neruda, um livro azul de letras amarelas que escondia em sua cabeceira e relia de noite: entre bocejos, eu a ouvia. Claro que eu o li, às escondidas, e lá havia versos que, eu tinha certeza (“Meu corpo de lavrador selvagem te enfraquecia / e faz saltar o filho do fundo da terra”), eram pecado mortal.

Aprender a ler é o que de mais importante me aconteceu na vida e, por isso, sempre lembro com gratidão do Irmão Justiniano e das cantigas de roda entre as carteiras, cantando e dançando enquanto decorávamos as conjugações. Pela leitura, esse mundo pequenino de Cochabamba se tornou o universo. Graças aos sinais que transformava em palavras e ideias, viajava pelo planeta e até podia voltar no tempo e me transformar em mosqueteiro, cruzado, explorador e viajar pelo espaço até o futuro em naves silenciosas. Minha mãe disse que a primeira manifestação do que, com os anos, seria uma vocação literária, foi que, quando eu não gostava dos finais dos contos e romances que lia, modificava-os com minha letra ruim da época. Eu não me lembro, mas sim das horas que passava lendo todos os dias, após voltar do La Salle e tomar meu copo de leite gelado com canela, meu alimento preferido. O avozinho Pedro brincava comigo: “Para o poeta a comida é prosa”. Mas eu ainda não escrevia versos em Cochabamba; isso viria depois, em Piura.

Agora que, por culpa do coronavírus e do isolamento forçado a que os madrilenhos estão submetidos, leio do amanhecer ao anoitecer, dez horas diárias em um estado de felicidade absoluta (moderada pelo medo à praga), aqueles dias cochabambinos voltam à minha memória com os fantasmas desvanecidos das primeiras leituras que o subconsciente me devolve: a orgulhosa Diana Mayo caía rendida nos braços de seu sequestrador Ahmed ben Hassan nos desertos da Argélia; o espadachim que nasceu em uma cela e, como os gatos, enxergava no escuro; o Judeu Errante e sua peregrinação pelo mundo. As crianças da época —pelo menos em Cochabamba— não liam quadrinhos e sim livros, e sem dúvida por isso jamais me viciei em Pato Donald, Mickey Mouse e Popeye, o marinheiro musculoso. Mas sim em Tarzan e Jane, com quem voei de árvore em árvore, pelas selvas da África.

Na biblioteca com teias de aranhas da Universidade de San Marcos li minha primeira obra-prima: Tirante o Branco, na edição de Martín de Riquer de 1948. Antes ainda, quando cadete do Leoncio Prado, devorei a série dos mosqueteiros de Alexandre Dumas, e sonhava com d’Artagnan todas as noites.

Nada me deu tanto prazer e felicidade como os bons livros; nada me ajudou tanto como eles a passar pelos momentos difíceis. Sem a literatura teria me suicidado nesse período atroz em que soube que meu pai estava vivo, quando me levou para morar com ele e me fez descobrir a solidão e o medo. William Faulkner mudou minha vida em plena adolescência; eu o li com lápis e papel para identificar suas mudanças de narrador, os saltos temporais, os redemoinhos dessa prosa que misturava personagens, tempos e lugares e aparecia, de repente, no romance um reordenamento da história ainda melhor do que o cronológico.

Para ler Sartre, Camus, Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir e demais colaboradores da Les Temps Modernes, aprendi francês, e inglês para entender Hemingway, Dos Passos, Orwell e Virginia Woolf, e decifrar o Ulisses de Joyce (consegui na terceira vez). Em uma cabaninha de Perros-Guirec, na Bretanha, no verão de 1962 li o tomo de La Pléiade dedicado a Tolstói e desde então Guerra e Paz me parece o auge do romance, com Dom Quixote e Moby Dick. Entre os do século XX, nada supera no meu entender A Condição Humana, de Malraux, com exceção de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Em Paris, no primeiro dia em que cheguei, em agosto de 1959, descobri Flaubert e passei a noite inteira, no Wetter Hotel, lendo Madame Bovary. Foi para mim a mais frutífera das descobertas: graças a Flaubert, soube o escritor que queria ser e o que não queria ser.

As boas leituras não produzem somente felicidade; ensinam a falar bem, a pensar com audácia, a fantasiar, e criam cidadãos críticos, desconfiados das mentiras oficiais dessa arte suprema do mentir que é a política. A vida que não vivemos podemos sonhá-la, ler os bons livros é outra maneira de viver, mais livre, mais bela, mais autêntica. Essa vida alternativa tem, além disso, a sorte de estar fora do alcance das pragas demoníacas que sempre aterrorizaram os seres humanos porque viam nelas os diabos, que, ao contrário dos inimigos de carne e osso, eram difíceis de derrotar.

Um bom leitor é o cidadão ideal de uma sociedade democrática: nunca se conforma com aquilo que tem, sempre quer mais e coisas diferentes das que lhe oferecem. Sem essas insubmissões o progresso verdadeiro seria impossível, aquele que, além de enriquecer a vida material, aumenta a liberdade e o leque de escolhas para ajustar a própria vida a nossos sonhos, desejos e ilusões. Karl Popper tinha razão: nunca estivemos melhor do que agora (nos países livres, entende-se).

O coronavírus ressuscitou a barbárie no que acreditávamos ser a civilização e a modernidade. Vimos coisas horríveis em Madri, como nos asilos: idosos abandonados ao que parece por cuidadores que não tinham máscaras, remédios e qualquer ajuda. Os mortos convivendo com os vivos, dormindo nas mesmas camas. O horror sempre supera o horror, não importa o tempo histórico. Ainda assim, com toda a ruína econômica e social que essa inesperada praga trará ao país, se, após sobreviver a ela, existir na Espanha um milhão a mais de espanhóis, ou pelo menos cem mil, atraídos à boa leitura graças à quarentena forçada, os demônios da peste terão feito um bom trabalho.

Informações sobre o coronavírus:

- Clique para seguir a cobertura em tempo real, minuto a minuto, da crise da Covid-19;

- O mapa do coronavírus no Brasil e no mundo: assim crescem os casos dia a dia, país por país;

- O que fazer para se proteger? Perguntas e respostas sobre o coronavírus;

- Guia para viver com uma pessoa infectada pelo coronavírus;

- Clique para assinar a newsletter e seguir a cobertura diária.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_