Meu corpo, um continente
Ele rodopia, crispa, abre as asas e levanta os olhos, mas é terra contígua acorrentada de desesperos feminis-civis-infantis-quadris. Músculos envelhecem como as montanhas e o fundo do mar
Meu corpo é um continente. Nele cabe tudo e tudo nele transborda. Sangue, choro, gozo, palavra, música, gesto, silêncio, uísque, ausência, a culpa de todas as encarnações, a alegria dos encontros verdadeiros, saudade, derrota. Cabem nele aquilo que não lhe dou, o que eu não consigo e o que eu queria lhe dar. Meu canto pra quem não foi, minha voz pras cadeiras vazias do teatro, todas as cadeiras de todos os teatros com ou sem pessoas sobre elas, e ainda meu desejo e minha dúvida. Meu corpo é continente de tudo quanto eu sinto e vejo e eu sofro mais um pouco a cada dia porque não sei o que fazer com tanta dor que nele cabe e daí não cabe mais então vaza.
Meu corpo vazante de contradições, meu corpo gostoso, esta bunda grande, estes peitos caídos, estes pelos que me dão preguiça de tirar mas que acho feios, meu cheiro de mulher agarrado nos pelos, e as duas minhas mãos que entendem tudo sempre, orientais, meu corpo que oferece e arrepia e tranca e grita. Meu corpo contém emocionado qualquer espécie de mínima felicidade e esperança: novos velhos amigos, irmãos, procissões, canções, pilhas de livros, ruas de pedra, varal de lâmpadas, talco, olhos vendados, abraços demorados, taturanas, crianças, café.
Meu corpo dá rodopios, crispa, abre as asas e levanta os olhos, mas é terra contígua acorrentada de desesperos feminis-civis-infantis-quadris porque é continente forjado em estupros sucessivos históricos ancestrais. Meus quadris cresceram depois de dois partos, como crescem os continentes depois de maremotos, estios e abalos sísmicos. Minhas articulações e músculos envelhecem como envelhecem as montanhas e o fundo do mar formando camadas sobrepostas e estratos que se friccionam, aquecem, esfriam e conformam óleos fedorentos e minerais coloridos translúcidos. Uma avalanche continental salpicada de diamantes e carne podre é o que cabe neste meu corpo pangeia, meu corpo américa, meu corpo um.
Estamos diante da iminência da morte. Os continentes sobreviverão como sempre sobreviveram os continentes aos cataclismas, meteoros e eras glaciais. Haverá o grande silêncio e então outros diamantes e outras gorduras apodrecidas, elementos e moléculas de milhares de séculos infinitos preguiçosos a experimentar sua nova dança de espirais geométricas. Antes, muito antes, nós morreremos de fome, tiro, injustiça e falta de poesia. Isto eu não sei onde enfiar.
Cartografia ou um corpo que res/existe é uma série de autorretratos e textos de Juliana Amaral, cantora, compositora e atriz, que se apresenta no próximo dia 19 no Sesc Pompeia, em São Paulo. Seus textos estão compilados no blog ascartasridiculas.blogspot.com.
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