Sírios escondidos em vala de floresta da Polônia: “Tudo o que eu quero é chegar à Alemanha”

Refugiados que passaram por Belarus recebem ajuda em sua jornada rumo ao coração da União Europeia

Kasia Wappa (no centro), ativista e moradora de Hajnowka, auxilia os sírios Abdelrahman (à esquerda), Khalid, Nassire Kassem, escondidos na floresta de Bialowieza, na Polônia. No vídeo, legendas em espanhol.
Antonio Pita GIANLUCA BATTISTA (VÍDEO)
Floresta de Bialowieza (Polônia) -

— Quer ir para o hospital?

— Não, tudo o que eu quero é chegar à Alemanha.

Khalid, de 47 anos, aponta com dor o seu único rim, com apenas 70% de função. Ele está escondido em uma vala no meio do mato, junto com outros três sírios, Kassem, Nassir e Abdelrahman. Esta é a parte polonesa da floresta de Bialowieza, compartilhada com Belarus, uma área frondosa de 150.000 hectares que se tornou o corredor de passagem predileto para milhares de migrantes que atravessam ilegalmente a fronteira entre os dois países nas últimas semanas. Os quatro procedem de Damasco e escapam de um país que em março completou 10 anos de guerra civil. É seu quinto dia de caminhada pela floresta, tentando se guiar com o GPS do celular para ir na direção dos Países Baixos e Alemanha.

Nassir, de 25 anos, não se queixa diretamente, porque mal tem forças para falar. É o que está pior no grupo, com o olhar perdido no chão, grandes olheiras e uma atadura na cabeça. “Os soldados belarussos me bateram na fronteira”, conta. “Quando veem migrantes na mata, também soltam os cachorros em nós”, acrescenta ao seu lado Kassem, o mais jovem (24 anos) e sorridente de todos. Khalid também está com as mãos cheias de feridas. “É pelos galhos, ao avançar durante a noite”, explica. Nenhum pede ajuda médica, por medo de serem detidos e porque aqui o lema é avançar, sempre avançar, até se reunir a familiares que já cruzaram a fronteira em 2015, quando a União Europeia recebeu um milhão de refugiados.

Abdelrahman (em primeiro plano) e Khalid, no bosque da Bialowieza.Foto: Gianluca Battista

Khalid frequentemente faz uma pergunta: “Madmun?” (“É confiável?”, em árabe). Após semanas de contatos meramente comerciais, fraudes e preços inflados pelas máfias, isso é tudo o que ele quer saber sobre uma pessoa ou organização cada vez que um nome é mencionado. Macaco velho, checa várias vezes a informação e recorda até três vezes as coisas mais importantes para chegar ao destino.

É o único que deseja chegar à Alemanha. Os outros três se dirigem aos Países Baixos, onde são esperados por familiares que migraram na leva de 2015. “Vou agora por causa da destruição e da situação econômica na Síria. Está muito pior do que antes”, responde Khalid. Kassem, que estava no Líbano (o segundo paíscom mais refugiados sírios, atrás da Turquia), foi dissuadido naquele momento “pelo mar e pelo perigo”. “Tinha medo de ir por mar, então não continuei. Mas em Belarus eu segui”, acrescenta.

A região que agora atravessam, Podlaskie, no nordeste da Polônia, fronteira com Belarus e a Lituânia, é a mais fria do país. Não há dia nesta época em que os termômetros não caiam em algum momento a zero grau. Embora seja de dia, os quatro estão gelados. Usam agasalhos, mas não com materiais térmicos. Abdelrahman, de 47 anos, e Kassem cobrem a cabeça com o capuz do casaco; Nassir a leva descoberta. Abdelrahman não tem nem sequer luvas.

Procedem todos da região de Damasco, mas só se conheceram em Minsk, ponto de entrada por avião dos migrantes que compram, através de agências turísticas de Bagdá, Arbil, Damasco, Beirut e ou Istambul, um pacote que inclui voo, visto e alojamento em Minsk. É a nova rota migratória criada pelo regime de Aleksandr Lukashenko para infiltrar a fronteira da União com um “ataque híbrido”, na definição da OTAN e UE.

Passaram 11 dias na parte belarussa da fronteira, durante os quais tentaram três vezes penetrar na Polônia, sem sucesso. Avançar por esta parte da mata é exaustivo. Enormes troncos de carvalhos, cárpinos e pinheiros bloqueiam a passagem a cada poucos metros e se tornam escorregadios quando perdem a casca. Os gestores da floresta optam por deixar as árvores caídas para que se decomponham no solo.

Água parada

Os quatro refugiados passaram os últimos três dias bebendo água parada e racionando comida, que fizeram durar até a véspera. Hoje acabou, mas chegam provisões. Quem as traz é Kasia Wappa, integrante de uma rede de ajuda aos migrantes formada por moradores da zona fronteiriça quando notaram que o problema se agravava. Quando ficaram sem comida, os sírios entraram em contato com a rede através de uma terceira pessoa.

Depois de mais de uma hora enviando localização através do celular e de busca na mata, Wappa os encontra. Quando aparece, com uma pesada mochila no ombro e acompanhada de outros dois estranhos, o grupo de sírios não mostra nem entusiasmo nem temor. Parece mais uma mistura de receio e cansaço, recostados na vala sem saberem se estão esperando Godot.

Kasia Wappa consulta seu celular enquanto procura o grupo de sírios na floresta de Bialowieza.Foto: Gianluca Battista

Khalid recebe as primeiras latas de conserva como se fosse a coisa mais normal do mundo. Wappa sorri, faz brincadeiras e dá à distribuição um ar da Papai Noel oferecendo presentes às crianças. Entrega-lhes calças secas, latas de atum, figos, doces, dois pães, baterias de carga externa e cigarros, entre outras coisas. Os quatro começam a relaxar. Descongelam a cara amarrada e a conversa flui mais, entre sussurros para evitar que sejam ouvidos por algum dos mais de 20.000 militares, policiais, guardas de fronteiras e membros de um corpo paramilitar de reservistas e voluntários que a Polônia mobilizou em seu limite com Belarus.

Pouco depois, algum ruído chama à precaução e todos se agacham. São alarmes falsos. Wappa recomenda a eles que se reclinem ainda mais: a fossa só tem cerca de um metro de profundidade, e a alguns metros é possível ver quando algum capuz se sobressai. O lugar, além disso, não está longe de uma estrada vicinal.

Um veículo militar patrulha a floresta de Bialowieza. Foto: Gianluca Battista

Rebobinemos para cerca de duas horas atrás. Wappa está em sua casa e recebe o alerta. Só sabe que há quatro homens sírios em um ponto da floresta e que não estão “muito mal” porque não pediram ajuda médica, apenas comida e água, diz.

Repassa concentrada uma lista das coisas que precisam e as enfia numa mochila. Prepara um recipiente térmico com chá – “sempre agradecem por isso”, aponta – e se dirige a uma das casas-depósitos mantidas pela rede. É um antigo quarto que ganhou estantes e armários para virar almoxarifado improvisado. Há casacos de montanha ordenados por tamanho, botas de chuva, luvas, sacos de dormir e muitas fraldas. Também se veem pilhas com engradados de água mineral (seis garrafas cada um) e alimentos fáceis de transportar, como iogurtes potáveis com sabores, chocolates, barrinhas energéticas, latas de atum… A ajuda é comprada com doações privadas que chegam de diferentes partes da Polônia, diz Wappa.

Essa polonesa recém-lançada no ativismo local dirige até a região, estaciona o carro na entrada da mata – num ponto que não desperte muitas suspeitas das forças de segurança – e inicia a busca.

No caminho, encontra restos da passagem de outros migrantes. Inspeciona-os em busca de pistas que lhe permitam encaixar algumas peças no quebra-cabeça da rota: se a roupa é de homem ou de mulher, se há objetos de crianças ou bebês, se parecia ser um grupo grande… Em uma mochila preta, fechada e largada junto a uma árvore, ela encontra um saco de dormir, uma calça jeans úmida, um pulôver e uma kufiya, lenço típico do Oriente Médio. Também um saco plástico com lixo. É uma forma de ajudar os seguintes. Tudo parece indicar, precisa Wappa, que um trainee das máfias viria recolher. Seu dono já não precisaria mais daquilo.

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