Crise migratória na Espanha: “É a ‘marcha negra’, viemos de todo o Marrocos”
Marroquinos e subsaarianos procuram em Ceuta uma saída para sua calamitosa situação econômica, agravada pela pandemia, lembrando a Marcha Verde ocorrida na década de setenta
Youssef (nome fictício para proteger sua identidade) observa da ladeira que leva ao polígono industrial de El Tarajal, em Ceuta, o espetáculo da mobilização militar espanhola na fronteira com Marrocos. Apenas um dia antes, ele era um protagonista nessa cena. Também chegou ao território espanhol cruzando a fronteira a nado. “Tenho um problema”, clama. “Tenho documentos, mas agora entrei [de maneira] irregular”. O jovem marroquino viveu em Ceuta por mais de 20 anos. Até que em 12 de março de 2020, um dia antes de Marrocos decretar o fechamento da fronteira com os encraves espanhóis de Ceuta e Melilla, viajou à vizinha Fnideq (chamada de Castillejos em espanhol), a sete quilômetros da cidade autônoma, e está retido desde então no país norte-africano.
Ceuta, uma cidade de 85.000 habitantes e 14 quilômetros quadrados, viveu duas jornadas sem precedentes na história das relações fronteiriças. Mais de 8.000 pessoas entraram na cidade, a nado ou a pé, saltando sobre as rochas através dos quebra-mares de Benzú, ao norte, e El Tarajal, ao sul, num efeito colateral da atual disputa diplomática que contrapõe Rabat a Madri. Suas histórias evidenciam os efeitos da ruptura para uma relação bilateral que é vital para as comunidades em ambos os lados da cerca. Youssef é um exemplo. “Não podia voltar de outro jeito”, conta. “Tentei, mas pediam muito dinheiro pelas passagens.” Nesta segunda-feira, vislumbrou uma oportunidade, se pôs a nadar e voltou para casa. “Com hora marcada para renovar o cartão de residência me deixarão viajar à Península?”, pergunta, referindo-se à parte europeia da Espanha.
Francisco, nativo de Ceuta, se orgulha de ter “contratado” dois rapazes recém-chegados no êxodo das últimas 48 horas. “Eles me abordaram pedindo trabalho e vi nos olhos deles que tinha que contratá-los”, conta, enquanto observa os jovens carregarem os ferros que comporão a estrutura do seu negócio de secagem de peixe. Amir, de 25 anos, é um deles. Não vem da vizinha Fnideq, nem do subúrbio de Benyounes, grudado na cerca de Benzú. Chegou a Ceuta vindo de Tetuan, a 40 quilômetros, e então cruzou a nado até a praia de El Tarajal. “Queria trabalho”, diz.
“Não é só a gente de Castillejos”, diz Samira, marroquina de 35 anos. “É gente que vem de Tânger, de Tetuan, de todos os lados; é a marcha negra”, afirma, numa alusão à Marcha Verde, a invasão marroquina da então colônia espanhola do Saara Ocidental organizada pelo rei Hassan II, em 1975. A mulher cruzou a nado, na tarde de segunda-feira, acompanhada de seu filho Ilias, de 15 anos, e junto a um grupo “onde morreu uma [pessoa]”. Um dia depois, recorda com angústia algumas das cenas daquela curta e angustiante travessia: “Havia um homem com seu bebê de dois meses amarrado nas costas”. Sua desculpa é outro cabo solto do fechamento fronteiriço que afetou o emprego e a economia tanto em Ceuta como em Fnideq. Ganhava 400 euros (cerca de 2.600 reais) por mês como empregada doméstica na cidade autônoma espanhola. Agora, sobrevive com o que sua patroa lhe manda “um mês sim e outro não”. Perguntada sobre seu marido, que ficou com as duas filhas, de 20 e 6 anos, responde com um lamento. “As pessoas em Marrocos não têm nada, não fazem nada”, lamenta.
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Ganga, de Costa do Marfim, trabalhou cinco anos em Tânger, no norte de Marrocos, mas não tinha como manter sua família com seu salário de peão de obra. “Eu trabalhava no porto da Costa do Marfim, vim ao Marrocos para trabalhar como qualificado em logística portuária, mas acabei destruindo as mãos como pedreiro”, conta. Ele, sua esposa e seus três filhos, de 4, 2 e 1 ano, pegaram na segunda-feira um táxi em Tânger com direção a Fnideq, onde se lançaram ao mar por volta das cinco da tarde. Um dia depois, ele vaga pelo polígono de El Tarajal, onde autoridades nacionais e locais prepararam vários galpões industriais para receber menores e mulheres, considerados vulneráveis e, portanto, não sujeitos às devoluções sumárias que o Governo da Espanha vem fazendo desde a tarde de segunda-feira. “Lá [em Marrocos] não posso manter minha família”, diz Ganga. “Quero pedir asilo para trabalhar aqui em condições e cobrir suas necessidades.”
Centenas de pessoas de origem subsaariana se aventuraram, junto com os marroquinos, a nadar até Ceuta. Muitas delas, após caminhadas maratonianas a partir de pontos distantes da fronteira, desfaleciam na praia pelo cansaço ou a hipotermia. No perímetro cercado, sobre a linha fronteiriça e entre trilhas de mata espessa, as forças de segurança marroquinas continham durante a manhã de terça a chegada constante de homens dispostos a saltar a cerca para entrar na cidade espanhola. “Os subsaarianos chegaram tarde”, diz, meio de brincadeira, Reduan (nome fictício), natural de Ceuta, na faixa dos 30 anos. “Quando tentaram cruzar [para Ceuta], a polícia marroquina já os estava parando”. O jovem fala após deixar seu primo na fronteira, para que volte a Marrocos por seus próprios pés.
Ao longo de todo o dia, centenas de jovens, alguns apenas adolescentes, caminhavam pelo calçadão que vai até o acesso fronteiriço de El Tarajal, para retornarem voluntariamente a Marrocos. “O que ele ia ficar fazendo aqui?”, comenta Reduan sobre seu parente. “Pronto, já vieram passar um dia e uma noite, e agora voltam para suas casas; até as mães deles já estão perguntando onde eles estão.”
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