México abre caminho para expropriações no setor de hidrocarbonetos

Câmara aprova contrarreforma promovida pelo presidente López Obrador, acendendo os alarmes dos setores produtivos, que antecipam um duro impacto na economia

O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, em uma usina da Pemex no começo de 2020.Handout . (Reuters)
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Andrés Manuel López Obrador já havia dado a senha no fim de março, quando enviou a iniciativa à Câmara dos Deputados. A contrarreforma do setor de hidrocarbonetos busca facilitar a suspensão dos alvarás de exploração das empresas privadas em nome do que o presidente chama de “soberania energética”. “É imperativo o fortalecimento das empresas produtivas do Estado mexicano como garantidor da segurança”, afirma o texto aprovado nesta quarta-feira pela câmara baixa do Congresso, numa referência à estatal Petróleos Mexicanos (Pemex). A iniciativa ainda enfrentará muitos obstáculos, pois viola não só a reforma constitucional energética aprovada pela Administração anterior como também acordos comerciais com os Estados Unidos, Canadá e a União Europeia.

A reforma da Lei de Hidrocarbonetos, aprovada com os votos favoráveis de 292 deputados, além de 153 contra e 11 abstenções, abre a possibilidade de que o Governo exproprie as operações de entes privados, segundo o analista de energia Gonzalo Monroy. “Isso tem relação com uma suspensão arbitrária, indefinida”, diz Monroy. “Combinada com a possibilidade de que o Estado possa substituir [os particulares] com a empresa do Estado [ou de terceiros] nas operações, sem indenização, é algo muito ruim.” A iniciativa permitiria ao Estado alegar que, por atentar contra a segurança nacional ou energética, ou a economia nacional, as operações de empresas privadas que tiverem concessões para operar podem sofrer intervenção. Caberia então ao concessionário, segundo Monroy, demonstrar que a situação se resolveu, e enquanto isso não teria direito “a indenização nem tampouco reconhecimento de custos ou contrapartida por uso das suas instalações”.

Essas três condições ―ameaça à segurança nacional, à segurança energética ou à economia nacional― “são três conceitos que significam tudo e não significam nada”, diz Óscar Ocampo, analista e pesquisador do setor energético ligado à organização sem fins lucrativos Instituto Mexicano para a Competitividade (IMCO), “porque não há critérios sobre o que põe em risco estas coisas. Isso é o mais perigoso dessa iniciativa: que não ficam claros os critérios sob os quais a Secretaria de Energia e a Comissão Reguladora de Energia vão funcionar”.

Ocampo concorda com Monroy em apontar que nesta proposta, diferentemente da iniciativa presidencial de reforma do setor elétrico, “fala-se propriamente em uma expropriação direta”, já que o Estado teria a autoridade para impor que uma empresa produtiva do Estado possa operar em instalações privadas. “Esta reforma é um traje sob medida para beneficiar a Petróleos Mexicanos, e por isso não tem nenhum componente de melhores serviços ou melhorar preços”, observa Ocampo. Se aprovada no Senado, Ocampo espera que enfrentará vários pedidos de liminar e obstáculos legais, pois contraria acordos comerciais regionais como o Transpacífico, o T-MEC (com EUA e Canadá) e o acordo com a União Europeia.

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Em 8 de abril, a Comissão Federal de Concorrência Econômica recomendou ao Congresso que não aprovasse contrarreforma, argumentando que, “se aprovada em seus termos, o projeto legislativo que reforma e amplia a Lei de Hidrocarbonetos afetaria negativamente o processo de competição e livre concorrência na cadeia de valor dos hidrocarbonetos, petrolíferos e petroquímicos, o que poderia resultar em uma diminuição da oferta de bens e serviços na indústria, com o consequente aumento nos preços pagos por famílias e empresas mexicanas”.

O impacto na economia mexicana não seria afetado apenas em termos de concorrência, mas também pela incerteza e por confusões legais envolvendo investidores. A reforma proposta seria retroativa, explica Monroy, por isso as “empresas que podiam exportar petróleo graças à reforma aprovada na Administração anterior agora já não poderão mais fazê-lo livremente. Isto é uma violação direta dos contratos”.

O projeto de contrarreforma repete a filosofia da reforma do sistema elétrico, que ficou paralisada nos tribunais e que López Obrador sugeriu destravar através de uma reforma constitucional. O mandatário pretende enterrar a herança de seu antecessor Enrique Peña Nieto em todos os âmbitos, mas o setor energético é provavelmente a ponta de lança desse propósito. E, assim como a reforma elétrica ―que, mesmo suspensa pela Justiça, tornou-se um desincentivo para o investimento, e caso entre em vigor terá um duríssimo impacto econômico e ambiental, segundo os especialistas―, também as mudanças na Lei de Hidrocarbonetos preocupam os setores produtivos.

O IMCO destaca que a lei “afetaria o já deteriorado ambiente de investimentos que se observa no setor energético desde o início da atual Administração e especialmente a partir da recente aprovação da reforma da Lei da Indústria Elétrica, por atentar contra o Estado de direito”. A isso se soma o déficit vertiginoso acumulado pela empresa paraestatal que se beneficiaria do plano. A Pemex soma mais de 110 bilhões de dólares (622 bilhões de reais) em dívidas, e López Obrador pretende de alguma forma resgatá-la. “Com o propósito de que mantenha seu papel preponderante no setor de hidrocarbonetos, esta proposta de reforma procura afastar o setor privado que participa dessas atividades”, prossegue o IMCO em nota.

O Governo e o seu partido Morena estão decididos a aprovar a nova lei pela via expressa, como ocorreu com a reforma elétrica, de olho na eleição da nova Câmara dos Deputados, em 6 de junho. Depois da aprovação na Comissão de Energia, a discussão da lei passou em seguida ao plenário, onde a oposição manifestou sua rejeição mais absoluta à iniciativa. Os partidos PRI e PAN qualificaram a tentativa de reforma como inconstitucional. O Movimento Cidadão desmontou o argumento de López Obrador segundo o qual estas mudanças legais ajudariam a combater a corrupção, enquanto o Partido Verde, aliado do Morena no Congresso, também criticou a iniciativa, advertindo que a eliminação da concorrência também pode ter repercussões ambientais. O partido de López Obrador defendeu o projeto como uma ferramenta para combater o huachicoleo, ou tráfico ilegal de combustível.

Mas seu alcance vai muito além disso, impactando a economia mexicana ao reforçar a percepção dos investidores sobre o país e sobre o caminho trilhado por López Obrador, que em seu mandato de seis anos busca deixar uma marca no setor energético. Segundo a tese do consultor David Shields, ele quer fazer história à custa do setor elétrico e dos hidrocarbonetos: “No México, os presidentes nacionalistas que expropriaram e nacionalizaram são os grandes heróis”, comenta.

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